para uma história da mulher no teatro português dos anos 1920

Tempo de Leitura
 

Sobre a Pessoa Autora

É licenciada em Estudos Artísticos – variante de Artes do Espectáculo pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e aluna do Mestrado em Estudos de Teatro na mesma instituição. Interessa-se por Artes Performativas, Educação, História, Filosofia da Arte e Estudos de Género. Colaborou na inserção da revista De Teatro – Revista de Teatro e Música (1922-1927) na plataforma Revistas de Ideias e Cultura (RIC). Aspirante a investigadora, desenvolve estudos na área da História do Teatro e da História das Mulheres em Portugal, para que a história das figuras femininas possa chegar a qualquer pessoa.


Resumo

A década de 1920 marca um período de intensa actividade teatral em Portugal, muitas vezes perpetuada pelo volume de publicações periódicas, ora de curta duração, ora de duração mais consistente – reflexo das mutações políticas e sociais que o país atravessou na década anterior e viria ainda a atravessar. O legado destas publicações permite-nos a reconstrução do ambiente cultural português, sobretudo concentrado (ainda) na cidade de Lisboa. Dentro desse volume de publicações, destaca-se uma revista, a De Teatro – Revista de Teatro e Música, editada entre 1922 e 1927, somando mais de cinquenta números. Através da leitura desta publicação, sublinha-se a informação que propicia este ensaio: com um volume significativo de peças publicadas na íntegra, apenas três são de autoria feminina. Interroga-se então: qual é o lugar das mulheres no teatro português dos anos 1920? Através da análise de um conjunto de artigos, uma monografia redigida por investigadores da História do Teatro em Portugal e peças publicadas na totalidade, pretende-se reflectir sobre a ausência de textos de autoria feminina; focam-se ainda alguns textos publicados, analisados a partir da forma como representam a mulher, trilhando caminho para a reconstrução do papel da mulher na história do teatro.

 
 

«[Q]uantas mulheres dirigem companhias regularmente subsidiadas? Quantas mulheres encenam regularmente com condições de produção mínimas? Quantas mulheres são autoras de textos representados em Portugal? Quantas mulheres têm voz audível no teatro português? Quantas podem escolher em vez de ser escolhidas? De que forma os repertórios reflectem o mundo que vivemos?» (Lapa 2001, 15)

Principia este ensaio por citar Fernanda Lapa, quando esta publica o “Programa do Manifesto da Escola de Mulheres”. Estávamos então na década de 1990, já distantes dos anos 1920 e da I República, que havia sido implantada em 1910. Reconvocar este discurso levanta de imediato a seguinte questão: se surgem estas questões em tempos tão presentes, não serão igualmente válidas as mesmas interrogações para todo o tempo antecedente? São estas interrogações que nos levam a procurar informação que nos possa dar alguma resposta satisfatória. Por um lado, poderemos confiar nas obras coligidas pelos grandes historiadores do teatro português. Por outro lado, parece-nos importante complementar esse saber histórico com o contacto directo com objectos que pertencem às balizas temporais a que nos reportamos. É no sentido de se adequar a estas duas necessidades que este artigo analisa a revista De Teatro – Revista de Teatro e Música, de elevada importância para a história do teatro português e prestigiada na imprensa da época.

 
Figura 1 – Capa da revista De Teatro, N.º 6, Fevereiro de 1923, com retrato da actriz Amélia Rey Colaço. Entidade detentora: Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Figura 1 – Capa da revista De Teatro, N.º 6, Fevereiro de 1923, com retrato da actriz Amélia Rey Colaço. Entidade detentora: Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

 
A revista De Teatro – Revista de Teatro e Música foi a mais importante publicação de teatro em Portugal nas primeiras décadas do século XX. Publicada mensalmente entre Setembro de 1922 e Agosto de 1927, a sua importância fica patente na regularidade com que publicou peças de teatro – muitas delas já representadas em Portugal –, crítica teatral, ensaios teóricos, notícias sobre companhias teatrais (estrangeiras e portuguesas), fotografias e caricaturas dos protagonistas do palco português de então. Embora pretendendo também a divulgação da actividade musical portuguesa, esse interesse foi sempre subsidiário face à predominância de artigos sobre teatro e, mais especificamente, sobre teatro português.

Com um total de 54 números, a revista revelou-se merecedora da inserção no sítio RIC – Revistas de Ideias e Cultura, não só pelo volume da sua publicação, como também pela importância dos artigos e peças teatrais aí publicadas, que muito contribuem para a formulação de uma ideia sobre o teatro português dos anos 20 do século passado. Desde o seu número inaugural, a De Teatro mostra-se como um instrumento de propaganda do teatro nacional, quer pelas opções de publicação das peças (a maioria, textos originais portugueses), quer pelos temas dos artigos publicados, que várias vezes englobam a crítica de espectáculos apresentados em Portugal, ensaios teóricos e reflexões sobre o próprio teatro português (desde a produção de literatura dramática até à distribuição de géneros dramáticos pelas diferentes companhias teatrais ou à representação e cenografia).

De valor incalculável no seu contributo para o conhecimento sobre teatro português, a revista De Teatro teve vários nomes a si associados, tanto na direcção da revista, como na redacção, entre os quais figuram Mário Duarte (1890-1934; médico, actor e dramaturgo); Valério de Rajanto (1888-1980; dramaturgo e director teatral); Victoriano Braga (1888-1940; dramaturgo e tradutor) e Leitão de Barros (1896-1967; cineasta e dramaturgo), este último sob o pseudónimo misterioso “O homem que passa”. A revista demarca-se também pela variedade de géneros teatrais publicados, entre farsas, comédias, tragédias e variados tipos de drama, publicando peças representadas entre 1874 e 1927.

Nenhum nome feminino passou pelos cargos de direcção e redacção da revista. Aliás, no que diz respeito a peças publicadas na íntegra, constam apenas três textos: Uma História de Boneca, de Ester Leão, publicada no décimo número da revista, assim como Madalena Arrependida, de Aura Abranches, e, por último, a peça Náufragos, de Fernanda de Castro, no número 32. No caso das duas primeiras, ambas foram aclamadas actrizes; já Fernanda de Castro era a única que não vinha do meio teatral, sendo casada com António Ferro aquando da publicação da peça [1].

[1]
António Ferro (1895-1956) foi um escritor, jornalista, político e diplomata português. À data de 1925, ano da publicação da peça de Fernanda de Castro, Ferro tinha já sido editor da revista Orpheu (1918), redactor-principal d’O Jornal, jornalista d’O Século e do Diário de Lisboa, director da Ilustração Portuguesa e repórter internacional do Diário de Notícias. Para além da sua carreira jornalística, Ferro havia já publicado também Teoria da Indiferença (1920) e Leviana (1921).

Figura 2 – Retrato de Ester Leão. Fonte: De Teatro, N.º 6, Fevereiro de 1923, verso da p. Rosto. Entidade detentora: Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Figura 2 – Retrato de Ester Leão. Fonte: De Teatro, N.º 6, Fevereiro de 1923, verso da p. Rosto. Entidade detentora: Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Figura 3 – Retrato de Fernanda de Castro. Fonte: Ilustração, N.º 134, 15 de Junho de 1931, p. 10. Entidade detentora: Hemeroteca Municipal de Lisboa.

Figura 3 – Retrato de Fernanda de Castro. Fonte: Ilustração, N.º 134, 15 de Junho de 1931, p. 10. Entidade detentora: Hemeroteca Municipal de Lisboa.

Figura 4 – Cena do 3º acto da peça Madalena Arrependida, de Aura Abranches, com Aura Abranches, Adelina Abranches, Alves da Silva e Antónia de Sousa. Fonte: De Teatro, N.º 10 , Junho de 1923, verso da p. de Rosto da peça Madalena Arrependida. Entidade detentora: Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Figura 4 – Cena do 3º acto da peça Madalena Arrependida, de Aura Abranches, com Aura Abranches, Adelina Abranches, Alves da Silva e Antónia de Sousa. Fonte: De Teatro, N.º 10 , Junho de 1923, verso da p. de Rosto da peça Madalena Arrependida. Entidade detentora: Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Apesar da sua curta existência de apenas meia década, esta revista constitui um marco não só no panorama do teatro nacional, como também na própria imprensa de periódicos portugueses, uma vez que resistiu a vários períodos de instabilidade, nomeadamente ao golpe militar de 28 de Maio de 1926.

Apesar da promessa de um novo formato no último número publicado, é certo que o projecto da revista De Teatro terminou sem deixar rasto da sua continuidade; contudo, é também referida, nesse mesmo número, a desmotivação causada pelas tentativas falhadas de iniciativas literárias. Não obstante, quase uma centena de anos depois, o interesse em disponibilizar a colecção para consulta pública representa um contributo importante para a investigação científica nas áreas dos estudos de teatro e da história das ideias.

Este ensaio encontra a sua motivação, sobretudo, numa vontade de descortinar razões que expliquem a aparente ausência de nomes femininos na revista – e dizemos aparente porque constataremos que as mulheres não só escreveram e encenaram peças como também se destacaram enquanto exímias actrizes e empresárias de companhias. A esta breve pesquisa e reflexão, adicionaremos uma outra, tão importante quanto esta: como surgem as figuras e temas femininos na revista De Teatro? E como surgem em textos contemporâneos relevantes no período a que nos reportamos, na transição da I República para o regime ditatorial, que se iniciaria em 1926 (ao qual a De Teatro conseguiu sobreviver ainda por mais um ano)? Para essa análise, iremos sobretudo servir-nos de uma comédia, publicada no segundo número da revista – a peça de André Brun, A Vizinha do Lado, estreada no Teatro do Ginásio, em 1913.

 
Figura 5 – Cartaz da autoria de Sanches de Castro do espectáculo estreado no Ginásio, A Vizinha do Lado, 1913. Fonte: De Teatro, N.º 2, Outubro de 1922, nn.pp. Entidade detentora: Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Figura 5 – Cartaz da autoria de Sanches de Castro do espectáculo estreado no Ginásio, A Vizinha do Lado, 1913. Fonte: De Teatro, N.º 2, Outubro de 1922, nn.pp. Entidade detentora: Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

 

As figuras e temas femininos não foram exclusivamente tratados por mulheres, pelo que importa observar que as peças de teatro podem ser ecos de vozes menos audíveis – como é o caso das mulheres. Assim, quer este ensaio reflectir, também, a forma como temas relacionados com o estatuto da mulher são abordados por autores homens, uma vez que o teatro é um fenómeno sociológico, que reflecte as relações de poder instituídas, nas quais se insere a condição feminina. Durante este período, observa-se uma intensa actividade teatral, comprovada quer pelo número de teatros existentes em Lisboa, quer pela oferta de espectáculos. Esta produção frenética de textos e espectáculos é prova viva de que nos encontrávamos num momento de tensões e mutações sociais e políticas – muitas vezes abordadas nas próprias peças e que culminariam no período áureo de um dos géneros favoritos do público, o teatro de revista.

A presente pesquisa trata-se de uma reflexão importante não só por reconvocar as mutações sociais e políticas daquele tempo, como por permitir lançar um olhar atento sobre a história das mulheres em Portugal, especificamente a partir do teatro. A aparente ausência das mulheres enquanto autoras contrasta com a sua profícua carreira enquanto actrizes, relegando-as para o protagonismo nessa função, até nas mais importantes obras de história do teatro português. Porém, fora desta análise, resta-nos ainda uma outra: e as personagens? Nesse sentido, a análise do papel das mulheres dentro de peças de teatro (como são representadas) permitirá não só compreender a evolução histórica dos direitos das mulheres, mas também será um útil complemento para a história do teatro em Portugal.

Reconvocar as vozes femininas para a criação de uma história do teatro português é uma investigação que se pretende instigar, reconhecendo que a presente reflexão se tratará apenas do prólogo, em busca de um epílogo futuro, com o contributo daqueles que se interessarem pelo estudo da história das mulheres no século XX.

Não compete a esta pesquisa fazer uma compilação histórica exaustiva da década de 1920 em Portugal, e assumimos antes lançar um conjunto de questões que trilhem caminhos futuros para a investigação da história do teatro em Portugal e da história das mulheres portuguesas que, neste período, terão tido destaque, sobretudo actrizes e escritoras com algumas condições de privilégio face a outras mulheres, discriminadas social e racialmente. É de sublinhar também a inclusão deste trabalho dentro da linha de pensamento de outros investigadores, dos quais importa destacar o nome de Eugénia Vasques, que alerta:

«Regra geral, as “histórias” do teatro que se vão fazendo em Portugal raramente investigam – ou identificam um ponto de vista estético ou se posicionam filosófica ou ideologicamente – e nem sequer se dão ao trabalho de comparar perspectivas epistemológicas: são “reprodutivas” e as fontes de conhecimento que utilizam (sendo a literatura uma das fontes mais utilizadas) explicam o facto de, desde Teófilo Braga a esta parte, se ir dizendo, no essencial, a mesma coisa» (Vasques 2003, 10).

É actualmente cada vez mais discutível que a história do teatro português esteja isenta de posições filosóficas ou ideológicas; no entanto, relança-se o desafio de coligir uma história do teatro das mulheres portuguesas, com o objectivo de despoletar o reconhecimento das diferentes perspectivas que constituem a história do teatro e do espectáculo em Portugal. A este desafio não são alheias algumas dificuldades e entraves inerentes às próprias exigências de uma investigação histórica sobre peças e espectáculos teatrais, como, aliás, salientam Ana Campos e Osório Mateus.

«As maiores dificuldades com que nos deparamos na tentativa de construir a memória do teatro português são, por um lado, a efemeridade do espectáculo teatral, que se finda com o cair do pano e, por outro, a quase inexistência de registos acessíveis e sistematicamente organizados do teatro que, desde os primórdios da nacionalidade, se fez em Portugal.» (Campos 2015, 75)

«Definitivamente, é apenas o texto que se pode conservar em bom estado; nunca a representação por inteiro. E a consequência cultural será inevitavelmente a conhecida socialização ascendente do texto, que um tempo não relativizado fará aparecer como “intocável”, face à representação de uma noite, efémera e hiper-“tocável”.» (Mateus 2002, 110)

Ainda que existam estas dificuldades, revistas como a De Teatro propiciam uma análise do contexto histórico e cultural da época, partindo daqueles que com textos variados contribuíram para a publicação e cujo impacto na sociedade importa reconhecer, enquanto período de «mudanças da sociedade portuguesa, do ponto de vista dos costumes, da mentalidade e da moral individual, familiar e social» (Cruz 2012, 85). Mais especificamente, é de sublinhar a relação do papel tradicional da mulher nas sociedades, incluindo na portuguesa, não só como mães, mas também aliadas ao projecto republicano, com os seus valores de laicização e da função social do teatro no papel da educação. Enquanto actrizes, estudos como os realizados na tese de Ana Campos (2004) permitem atentar na diferença de expectativas entre a representação feminina e masculina, através da análise de textos publicados na secção de crítica da revista, com diferentes exigências entre o que se esperava de um actor e de uma actriz.

O período da I República, que ocupa a quase totalidade do tempo de vida da revista De Teatro, corresponde a um dos momentos mais dinâmicos da cultura portuguesa. O seu estudo revela-se interessante não só pelo dinamismo teatral presente sobretudo nas grandes cidades, das quais nos reportaremos a Lisboa – por ser o foco da revista De Teatro e capital cultural nacional de então –, mas também porque este período corresponde a uma intensa manifestação de novas tendências culturais e alterações da própria mentalidade da sociedade, dos críticos, dos autores e do público. As tensões políticas e os escândalos da época verteram para a produção de textos e espectáculos – aliás, após a instauração da I República, o primeiro texto a subir à cena no Teatro Nacional D. Maria II, rapidamente rebaptizado para Teatro Nacional Almeida Garrett, de acordo com o ideal republicano de destituição de todos os nomes associados ao poder monárquico, é A Lei do Divórcio, de Augusto de Lacerda. A proliferação deste tipo de textos exibe, por um lado, a forte relação entre a produção teatral e o ideário republicano, e demonstra, por outro, alguma reflexão sobre as mutações sociais que ocorriam naquele momento, mutações essas de grande relevância, por regulamentarem as práticas sociais e as relações interpessoais. O divórcio apresenta-se como uma medida de laicização do Estado, mas também como o reconhecimento de um direito, cujo impacto será significativo para as mulheres portuguesas, ainda que socialmente pouco aceite por uma parte da população.

Palimpsesto-cartaz-peça-o-divorcio
 

Figura 6 – Cartaz da peça O Divórcio, pelo Núcleo Dramático do Teatro Taborda, na Casa dos Ferroviários, antigo Teatro República (Barreiro), 1922. Entidade detentora: Arquivo Municipal do Barreiro Cota, Espólio José António Marques (JAM), Caixa 5.

 
A par do elevado número de casas de espectáculo, deduz-se que a sua intensa actividade revela um interesse pelo teatro naquela época, quer numa perspectiva social, quer como um objecto de consumo, que irá repartir a oferta de espectáculos de diferentes géneros, de acordo com os teatros de primeira e de segunda ordem [2]. A par desta distribuição dos géneros teatrais pelos diferentes teatros, as mulheres na arte de representar eram sobretudo celebradas enquanto actrizes – não só porque as condições socioeconómicas e o estatuto das mulheres as relegaria primordialmente para o estatuto de objecto de exibição (embora haja casos que transcendem este papel social, não só através da escrita, como através da direcção de companhias), como também porque «a década de 1920 ainda assistia ao culto das estrelas do teatro que, num ou outro espaço, dominavam as temporadas» (Leal 2016, 60). Enquanto empresárias, salvo excepções como Amélia Rey Colaço, muitos dos projectos, de acordo com Joana d’Eça Leal: «[…] Não reflectiam projectos sólidos ou intenções duradouras, sendo apenas a forma mais confortável e directa de referir a presença daquela(s) vedeta(s) num determinado teatro, com um elenco necessário para realizar o repertório» (ibid., 61).

É de destacar que, à época, as mulheres ainda não eram reconhecidas como plenas cidadãs, não podendo, nomeadamente, exercer o direito de voto. Assim, atravessamos ainda um período em que o papel social da mulher é sobretudo pensado enquanto educadora dos seus filhos, relegando-a para um papel de “eterna menor de idade”, na medida em que a sua vida está estruturada, quase sempre, por uma dinâmica em que é inicialmente obediente ao pai e na fase adulta ao marido. A profissão da actriz ainda é encarada entre o paradoxo da admiração pelo estrelato, por um lado, e alguma marginalização da profissão, por outro, sobretudo entre os subgéneros de teatro considerados populares, como é o caso do teatro de revista (e veremos o reflexo disso em peças como A Vizinha do Lado, de André Brun), em que a mulher é considerada a origem da degeneração e libertinagem.

Os desenvolvimentos de 1926 em diante não vão permitir grandes passos no que diz respeito quer aos direitos das mulheres, quer ao reconhecimento do seu papel dentro do universo teatral, pelo que só mais tarde surgirá um interesse em recuperar essa história e reivindicar a importância das mulheres no teatro português. Claro está que não se tratou apenas de uma derrota das esperanças de mutações sociais que a República almejou no que diz respeito às mulheres; o próprio ideário republicano rapidamente esmoreceu, culminando na instauração da ditadura, inicialmente militar, que atravessou quase meio século da história de Portugal. Essa análise é bem resumida pelo historiador Luiz Francisco Rebello:

«As grandes esperanças de regeneração nacional depositadas no novo regime não tardariam a diluir-se no embate com toda uma série de obstáculos e dificuldades das mais diversas origens, mas convergentes para a inviabilização da plena consecução dos ideais republicanos. É certo que, por um lado, nos primeiros anos, ainda foi possível pôr em prática um vasto programa de reformas – a abolição dos títulos nobiliárquicos e da censura, a laicização da sociedade, a instituição do divórcio, as novas leis da família, do registo civil, da imprensa, da greve e do inquilinato, a remodelação do ensino em todos os escalões e a sua democratização. Mas, por outro lado, a instabilidade governativa (quarenta e seis ministérios em dezasseis anos), as divisões e lutas intra e interpartidárias, as crises financeiras, as incursões e ofensivas monárquicas (em 1911, 1912 e 1919), a permanente agitação social (greves, tumultos, atentados, assaltos a estabelecimentos comerciais), impondo a decretação do estado de sítio nos momentos de mais alta tensão, criaram um clima de desencanto propício ao manobrismo das forças da reacção, inconformadas com a derrota do 5 de Outubro» (Rebello 2010, 245).

A situação das mulheres no teatro português constituía um «território condicionado», tal como refere Fernando Matos de Oliveira, com a actriz «dividida entre a aclamação e a rejeição, a formatação necessária aos papéis estereotipados que o repertório dominante lhe impõe e a fragilidade social associada ao seu estatuto» (Oliveira 2010, 27). Apesar de casos de actrizes com sucesso aclamado, a carreira teatral não era isenta de preconceitos e prova viva disso têm sido as biografias de actrizes que atestam as dificuldades enfrentadas pela sua opção de carreira [3].

Mas se, enquanto actrizes, é inegável a influência que tinham no paradigma cultural português, a escrita de teatro de autoria feminina revela-se frágil, não pela sua inexistência, como se pode verificar pela sua presença na produção de teatro para a infância, mas porque este e outros géneros a que eram remetidas eram subsidiários relativamente aos grandes géneros teatrais (o drama e a comédia). As tentativas na comédia de costumes mostravam-se por vezes incipientes, culminando num desinteresse por levar esses textos à cena (ibid.).

Não deixamos de destacar, no entanto, algumas tentativas singulares e representativas do pensamento republicano e feminista. Caso paradigmático é o “drama de tese” de Aurora Teixeira de Castro, Na Sombra (1927), onde, segundo Fernando Matos de Oliveira:

«[…] não faltam declarações sobre as práticas educativas assentes na literatura, na educação física ou na educação religiosa; reflexões sobre a divergência entre um ensino literato e um ensino aberto às ciências naturais ou ainda a reafirmação do direito de homens e mulheres a igual instrução. […] A autora produz inclusive inversões curiosas, como sucede quando coloca na voz de homens a defesa dos mais importantes princípios feministas» (ibid., 27).

[2]
Tipicamente, a oferta de espectáculos era repartida pelos diferentes teatros da cidade, de acordo com o género teatral: por exemplo, as tragédias (género considerado mais elevado, segundo Aristóteles) eram reservadas a espaços como o Teatro Nacional Almeida Garrett (actual Teatro Nacional D. Maria II). Géneros populares, dos quais a revista faz parte, eram representados fora desses espaços mais prestigiados, em locais conhecidos como teatros de segunda ordem (nos quais o Teatro do Ginásio se insere).

[3]
Exemplo disto é a biografia que João Florindo coligiu a propósito de Ester Leão.

Figura 7 – Retrato de Aurora de Castro (1891-1931), notária, advogada, vice-presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, e activista dos direitos da mulher.

Figura 7 – Retrato de Aurora de Castro (1891-1931), notária, advogada, vice-presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, e activista dos direitos da mulher.

Já no drama histórico, Luna de Oliveira vê o seu texto, Viriato, subir à cena do Nacional, uns anos antes (1923). Por outro lado, temos o aparecimento de grandes nomes do teatro português, como Amélia Rey Colaço, que a partir de 1929 passará a explorar, juntamente com Robles Monteiro, o Teatro Nacional D. Maria II. Sobre o papel de figuras femininas dentro das companhias teatrais, Joana d’Eça Leal observa:

«(…) As companhias que se formaram em torno de uma figura feminina, ou de um casal, manifestam o destaque que adquire, nesta profissão, a mulher e a actriz […] o lugar central da mulher enquanto figura agregadora, numa lógica empresarial, e enquanto figura liderante na construção do êxito e na gestão da própria carreira. Lucinda Simões, Adelina Abranches, Palmira Bastos, Lucília Simões, Maria Matos, Aura Abranches e Amélia Rey Colaço são exemplos de como as mulheres dominaram o negócio teatral neste período, estabelecendo-se individualmente ou, pelo menos, com maior notoriedade do que os seus parceiros» (Leal 2016, 67).

Figura 8 – Desenho para o cenário da tragédia Viriato, de Luna de Oliveira, representada pela Sociedade Artística, companhia residente do Teatro Nacional D. Maria II. Fonte: ABC, 15 de Março de 1923, p. 20.

Figura 8 – Desenho para o cenário da tragédia Viriato, de Luna de Oliveira, representada pela Sociedade Artística, companhia residente do Teatro Nacional D. Maria II. Fonte: ABC, 15 de Março de 1923, p. 20.

No que diz respeito à reduzida produção textual por parte de mulheres, esta explica-se também pelo facto de ser um período de intensa actividade teatral, com um elevado número de peças escritas por dramaturgos, pelo que os textos de autoria feminina eram mais facilmente relegados para pano de fundo. Porém, mesmo que a qualidade dos textos raramente seja reconhecida, importa a sua referência obrigatória na história do teatro português e na história da emancipação feminina, uma vez que muita da produção teatral feminina da década de 1920 foi grande aliada dos ideais republicanos e talvez tão política quanto a restante produção nacional. Como actrizes e empresárias, foram decisivas para a produção teatral da República (e não só). As reivindicações das mulheres, numa leitura feita por Luiz Francisco Rebello:

«[…] Constituíam “perigo gravíssimo”, como tal denunciado, em discurso académico proferido em Dezembro de 1912 por um professor da Faculdade de Direito de Coimbra que viria a influir decisivamente nos destinos da Nação e se vangloriava de ser “tão retrógrado, tão fóssil, que para [ele] o maior elogio da mulher é ainda o epitáfio romano: Era honesta, dirigia a casa, fiava lã” – citámos António de Oliveira Salazar» (Rebello 2010, 263-264).

Alguma produção dramatúrgica masculina da época opunha-se não só a certos direitos das mulheres, como à própria laicização do Estado – de que é exemplo o divórcio –, pelo que essas reivindicações representavam perigos. Apesar do ideário republicano ser defendido por muitos – homens e mulheres –, nem todos os seus princípios foram aceites de ânimo leve, especialmente numa sociedade caracterizada por uma religiosidade fervorosa. A reivindicação dos direitos das mulheres, e o divórcio, em particular, não foram defendidos por todos. Ainda que alguns textos reflectissem ideias que apoiavam essas iniciativas, outras peças houve que criticavam essas causas, revelando um pensamento mais conservador. Ana Campos apresenta um caso exemplar:

«Tito Arantes, advogado e deputado durante a ditadura salazarista – da qual era fiel adepto – viu ainda em estudante a sua peça de ambiente contemporâneo, Os Emigrantes, estrear-se no Teatro Politeama, a 15 de Dezembro de 1921, pela companhia Lucília Simões – Érico Braga. […] Nesta peça o divórcio, legalizado pela República, é condenado, e os filhos de casais divorciados apresentados como criaturas desrespeitadoras de qualquer autoridade moral. A figura feminina é valorizada como a guardiã da família e dos valores tradicionais, sendo um solar na Beira o lugar onde vão entrar em oposição esses valores e a moral corrompida» (Campos 2007, 125).

Outro caso, embora com pouca aclamação pela crítica, é reportado na obra de Glória Bastos e Ana Isabel Vasconcelos:

«Os autores de Talassa [Arthur Cohen e Guilherme Barbosa] escreveram ainda outras comédias, algumas de gosto duvidoso, como Os direitos das mulheres (Ginásio, Outubro 1911), caricatura a traço grosso, sobre a qual se escrevia na altura que “não se trata de uma peça de valor literário” – o que facilmente se adivinhava – sendo, todavia uma “comédia cheia de graça e oportunidade”» (Bastos & Vasconcelos 2004, 111).

Apesar de algumas almas conservadoras se terem mantido contra os princípios republicanos, não é irrelevante a consciência revelada por alguns homens de letras, tais como Leitão de Barros (que publicou na revista De Teatro não só peças da sua autoria, como assinava a crítica dos arranjos cénicos). O cineasta interessou-se por questões como o assédio sexual por parte de homens que usavam o estatuto social para abusar de mulheres de condição social inferior, abandonando-as de seguida, após engravidarem.

O nome de André Brun destacar-se-á na comédia, «ao demonstrar a rara capacidade de aliar o jocoso a um retrato aberto dos tipos sociais», segundo as mesmas autoras supracitadas (ibid., 112).

 
Figura 9 – Página de abertura da peça publicada, A Vizinha do Lado, com caricatura e dedicatória de André Brun. Fonte: De Teatro, N.º 2, Outubro de 1922, nn.pp. Entidade detentora: Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Figura 9 – Página de abertura da peça publicada, A Vizinha do Lado, com caricatura e dedicatória de André Brun. Fonte: De Teatro, N.º 2, Outubro de 1922, nn.pp. Entidade detentora: Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

 

A sua peça A Vizinha do Lado mostra qualidade literária não só pela forma como está escrita, como também pelo facto de constituir um exemplo que reflecte o próprio teatro (sendo, por isso, metateatral, na medida em que é teatro sobre teatro), bem como a própria condição feminina e a condição da actriz.

A comédia corresponde às peripécias vividas em torno da personagem de Eduardo, dividido entre a sua relação com Isabel (uma actriz de teatro) e Mariana, sua vizinha. A comicidade revela-se não só através do cómico de situação, como de linguagem – cujo principal recurso é o trocadilho. Através destes mecanismos, o enredo desenvolve-se: Eduardo, originalmente da província e tendo desistido dos estudos que, supostamente, faria em Lisboa, vê-se ameaçado pela visita do tio Plácido – cuja missão é verificar o desempenho de Eduardo nessa cidade. Várias peripécias reconduzem a história e Plácido redescobre um amor antigo: a madrinha de Mariana, D. Adelaide. A peça termina com a resolução do conflito amoroso; Isabel desiste de Eduardo e preparam-se dois casamentos: o de Plácido e Adelaide, por um lado, e o de Eduardo e Mariana.

Logo na primeira cena, a Criada critica a condição da actriz, mostrando-se reticente quanto ao andar «com as pernas à mostra» (Brun 1922, 6). A peça contém uma subtil ironia, caricaturando o preconceito que a sociedade tinha face às actrizes de revista, género que Eduardo escrevia e Isabel representava. A crítica social é também evidenciada pelo facto de que, se, por um lado, as mulheres exibem os seus corpos, por outro não deixa de ser também em parte devido à falta de qualidade literária dos dramaturgos, algo apresentado na conversa travada entre Saraiva e Eduardo, na Cena VII. Fica patente a ideia de que toda a gente escreve teatro – mau teatro –, que faz inclusive adormecer, mas que no final é elogiado e aplaudido (uma crítica à falta de gosto do público).

 
Figura 10 – Excerto do diálogo supramencionado travado entre Eduardo e Saraiva na peça A Vizinha do Lado. Fonte: De Teatro, N.º 2, Outubro de 1922, p. 9. Entidade detentora: Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Figura 10 – Excerto do diálogo supramencionado travado entre Eduardo e Saraiva na peça A Vizinha do Lado. Fonte: De Teatro, N.º 2, Outubro de 1922, p. 9. Entidade detentora: Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

 

Curiosamente, é também Saraiva que aceita a condição de actriz de Isabel que, no final do enredo, se revela uma mulher digna: reconhece a subversão da sua actividade e termina a relação com Eduardo, demonstrando subscrever o mesmo conjunto de valores que as restantes personagens (cf. Campos 2004, 73). É também ela que convoca o retrato das mulheres do teatro do seu tempo – de condição social humilde, pouco instruídas e com necessidade de agir excentricamente para conseguirem sobreviver.

A comédia destacada é um retrato importante da vida social portuguesa, com paródias que o público da época reconheceria: o trocadilho com o teatro “Barbaridades” (Variedades) ou até o cómico de situação provocado pelo engano com que Eduardo quer convencer o tio Plácido de que Ângela Pinto é uma famosa médica. Apesar do efeito cómico, existe uma intenção transversal a toda a peça de demonstrar que o teatro é um espaço social que questiona a ordem e os valores, assim como o papel das mulheres – à época vistas sobretudo como os pilares da constituição da família. Afinal de contas, mesmo quando nos reportamos à dramaturgia de autoria masculina, as mulheres continuam a ser motores da história.

 

Para citar este ensaio:

Galamba, Ariana Sofia. 2021. “Para uma História da Mulher no Teatro Português dos Anos 1920.” Palimpsesto. www.palimpsesto.online/ensaios/para-uma-historia-da-mulher-no-teatro-portugues-dos-anos-1920.

referências ↓

Bastos, Glória, & Ana Isabel Vasconcelos. 2004. O Teatro em Lisboa no Tempo da Primeira República. Lisboa: IPM, Museu Nacional do Teatro.

Brun, André. 1922. “A Vizinha do Lado.” In De Teatro – Revista de Teatro e Música 2.

Campos, Ana. 2004. “Figurações de Teatro. O Teatro Visto pela Revista De Teatro (Revista de Teatro e Música: 1922-1927).” Tese de Mestrado em Estudos de Teatro apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Campos, Ana. 2007. “A Revista De Teatro – Uma Visão Parcial da Dramaturgia Portuguesa dos Anos 20.” Sinais de Cena 7, 122-129.

Campos, Ana. 2015. “Algumas Considerações sobre a Revista De Teatro – Revista de Teatro e Música.” Revista Ibero-americana de Ciências da Comunicação 5, 74-84.

Cruz, Duarte Ivo. 2012. Teatro em Portugal. Lisboa: CTT Correios de Portugal.

Leal, Joana d’Eça. 2016. Companhia Rey Colaço – Robles Monteiro. Lisboa: INCM.

Mateus, Osório. 1977. Escrita de Teatro. Lisboa: Bertrand Editores.

Oliveira, Fernando Matos. 2010. “A Mulher no Teatro da República.” Sinais de Cena 14, 25-30.

Rebello, Luiz Francisco. 2010. Três Espelhos. Uma Visão Panorâmica do Teatro Português do Liberalismo à Ditadura (1820-1926). Lisboa: INCM.

Vasques, Eugénia. 2001. Mulheres que Escreveram Teatro no Século XX em Portugal. Lisboa: Edições Colibri.

Vasques, Eugénia. 2003. Teatro. Lisboa: Quimera.

Anterior
Anterior

jogos olímpicos de pequim – narrativa de (inter)nacionalismo

Próximo
Próximo

o informe e a forma entre bernando soares e álvaro de campos