jogos olímpicos de pequim – narrativa de (inter)nacionalismo

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Sobre a Pessoa Autora

Frequenta o terceiro ano da licenciatura em Estudos Asiáticos na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É atualmente vice-presidente da Liga de Estudos Asiáticos na mesma instituição académica. Aspirante a bolsista MEXT para o Japão, a sua maior esfera de interesse revolve em torno da cultura, história, línguas, economia e medidas de sustentabilidade asiáticas, bem como das Relações Internacionais e do estudo da Sociedade Global, sobretudo no que respeita ao crescimento asiático no palco mundial. Além destes interesses académicos, é ávida praticante de boxe, o que influencia profundamente os seus tópicos de redação e estudo académico.


Resumo

A China tem vindo a procurar manifestar o seu ressurgir no sistema internacional dominado pelo ocidente e fomentar ideias nacionalistas, tendo os Jogos Olímpicos de Pequim de 2008 servido como ferramenta para tal. No ensaio explora-se por partes esta conjuntura, fazendo particular uso da Cerimónia de Abertura. Primeiro, estudam-se os meios para renovar a reputação da China a nível global, usando o marketing olímpico como um instrumento de soft power; segundamente, interpreta-se o uso do evento para enfatizar o sentimento de identidade nacional. Em ambos os casos a China recorre a uma narrativa cénica que procura ser um agente de mudança e legitimação social, uma fonte de reconhecimento internacional e prestígio nacional e um mecanismo de construção da nação. Por último, debate-se a eficácia destes projetos, através das controvérsias e dificuldades que envolveram a abertura.

 
 

introdução

Napoleão veio celebremente a observar: «Deixem a China dormir. Porque quando ela acordar, o mundo tremerá» (Kynge 2006, xiv) [1]. Ainda que não se tenha a certeza se a passagem foi realmente proferida pelo imperador francês, de uma coisa podemos ter a certeza: de facto tem-se vindo a observar esse “tremer” nos últimos anos (ibid.), e pode-se argumentar que a própria China procurou manifestar isso mesmo no ano de 2008, nos Jogos Olímpicos de Pequim.

Com efeito, muitas vezes se reflete sobre o nacionalismo e internacionalismo na China a partir de assuntos políticos, diplomáticos e governamentais, mas poucos consideram de que modo atividades tais como o desporto influenciam a autorrepresentação da China no mundo. Os desportos e os seus eventos na China são um agente de mudança e legitimação social, uma fonte de reconhecimento internacional e prestígio nacional e um mecanismo de construção da nação (Guoqi 2008, 4).

Não é novidade, no entanto, que o desporto, e mais particularmente os Jogos Olímpicos, sempre foi importante não só como uma forma de promover um espírito de desporto ao nível internacional, mas também como condutor de demonstrações de orgulho nacionalista. Os Jogos Olímpicos de verão “nazis” em Berlim (1936) e os Jogos Olímpicos de Moscovo durante a Guerra Fria (1980) são talvez a ilustração mais clara deste ponto, como é visível na figura 1. Mas, fora destes momentos mais tensos e irregulares, todas as ocasiões deste megaevento fazem acompanhar o seu internacionalismo de uma conotação nacionalista, principalmente com o crescer da ideia de Estados-nação por todo o mundo para além do Ocidente na década de 1950 (ibid.; Horne & Whannel 2020, 61). Estas características alinham-se, oportunamente, com a China das últimas décadas, que procurou participar ativamente na comunidade internacional, tornando as preocupações sobre a identidade nacional chinesa, o nacionalismo e a internacionalização urgentes (Guoqi 2008, 63).

[1]
«Let China sleep. For when she wakes, the world will tremble»

 

Figura 1 – Cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de 1980 em Moscovo. © Getty Images

 
A cerimónia de abertura é um dos momentos mais cruciais em termos desta representação da dualidade entre globalização e nacionalismo que perpassa todo o evento; trata-se de um ritual tradicional importante dos Jogos Olímpicos, que representa uma concentração de características, qualidades e mensagens que combinam o local e o global, o culturalmente específico e universal, espetáculo e festival, numa produção complexa que visa desafiar, educar e entreter o público fazendo uso dos meios de comunicação (Chen, Colapinto & Luo 2012, 180). Esta celebração de uma identidade nacional mas também global revela um exercício duplo de coesão interna doméstica e de projeção de soft power [2] (Arning 2013, 524) .

Neste contexto, sugerimos explorar como os Jogos Olímpicos de verão de 2008 construíram uma compreensão de nacionalismo chinês, assente na adoção ambivalente da internacionalização na sua narrativa cronológica e unificadora da história e modernidade chinesas, a partir da análise da cerimónia de abertura e da sua cobertura pelos meios de comunicação (Lawson 2011, 2-15).

[2]
O termo soft power é um estrangeirismo do campo de estudo das Relações Internacionais, sintetizando a teoria apresentada por Nye, em 1990, no seu primeiro livro Bound to Lead: The Changing Nature of American Power (1990) e que mais tarde se veio a consolidar com a obra Soft Power: The Means to Success in World Politics (2004). Assim sendo, Nye e teoristas posteriores têm vindo a mencionar o soft power como uma estratégia que procura conquistar os corações e as mentes dos alvos, sendo esses entidades mundiais, potências ou as suas populações, a partir do apelo da e atração pela cultura e pelos ideais da Nação que emprega a tática de Soft Power (Nye 1990).

 

i. olímpicos e nação

Os termos “Olímpico” e “Jogos Olímpicos”, com origem na Grécia Antiga, ressurgiram no léxico do século XVIII e XIX, em conjunto com o culto do atletismo e da recreação física. Desta forma, já se observavam vários usos do termo para designar eventos multidesportivos, mas foi só em 1894 que Baron Pierre de Coubertin fundou o Comité Olímpico Internacional (COI), responsável pelos primeiros Jogos Olímpicos modernos como os conhecemos hoje, em 1896 (Horne & Whannel 2020, 101-138).

Convém evidenciar que a emergência do evento foi contemporânea da e em concordância com a modernidade. De facto, foi compreendido o desporto competitivo entre nações como uma fomentação da compreensão mútua e do respeito entre indivíduos de diferentes Estados, etnias e posições sociais. No entanto, as conceções do mundo não existem independentemente das relações de poder (ibid.).

Apesar do seu internacionalismo desencorajar competições de cariz nacionalista, os Jogos sempre foram observados como um teatro político e ideológico. Os meios de comunicação procuraram destacar esses propósitos nacionalistas e dramatizar os Jogos equiparando-os a um concurso de proezas entre nações. As bandeiras, equipas, uniformes nacionais e hinos nas cerimónias de vitória, estimulado com a cobertura dos meios de comunicação, contribuem para a imagem dos Jogos Olímpicos como uma competição simbólica entre nações. O jornalista e autor inglês George Orwell frequentemente condenava o desporto internacional e os Olímpicos como uma “guerra sem o tiroteio” (Orwell 1945 apud Horne & Whannel 2020, 22).

O desporto não demonstra simplesmente a natureza da globalização. É gerador e recetor da globalização, e corporiza dramaticamente as tensões do dualismo global-local (Tomlinson 1996, 589). Com efeito, a pertença nacional e a identidade nacional constituem o meio primordial através do qual o público por todo o mundo se envolve com os Jogos (Horne & Whannel 2020, 101-138).

A partir deste breve enquadramento ao evento, depreende-se que desde a sua génese se observam contradições inerentes aos Jogos entre o internacionalismo e o nacionalismo, que delineiam o desenvolvimento de tensões políticas pelo movimento olímpico, e, com efeito, esta mesma contradição e ambiguidade é observável nos Olímpicos de Pequim de 2008 (ibid.).

Figura 2 – Um grupo de fãs japoneses e americanos na plateia a apoiarem os seus compatriotas, nos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012. Imagens como estas representam claramente esta dicotomia internacional-nacional. Por um lado podemos observar várias nações unidas num só espaço pacífico, no entanto, em lados opostos, a torcerem pelos seus respetivos desportistas. © COI

 

ii. a china e o desporto

Indiscutivelmente, o fim do século XIX e o início do século XX definiram o período em que o “problema” do corpo e o “problema” do nacionalismo se fundiram. Este paralelo com a condição física é observável em inúmeros regimes de Estado da época, principalmente na Inglaterra, nos EUA, na União Soviética e nos regimes fascistas europeus e asiáticos (Morris 2004, xv).

A disciplina do corpo, incluindo a educação física e o desporto, era essencial ao imperialismo e à maneira como vários tipos de nacionalismo se desenvolveram nesse período, no qual se podem enquadrar as circunstâncias chinesas. Neste contexto, Andrew Morris (ibid.) apresenta uma perspetiva comparativa da história da condição física como um fenómeno simultaneamente global e local, numa altura em que a China estava profundamente envolvida com o problema do nacionalismo.

Como Morris deixa claro, um problema muito específico no seio do nacionalismo, da modernidade e do corpo estava a tornar os desportos estrangeiros e ocidentais relevantes para o desenvolvimento de uma identidade nacional chinesa moderna, embora essa identidade fosse definida em oposição a muitas características do Ocidente e a muitos tipos de influência estrangeira (ibid., xvi-xvii).

Por isso, a China era “obcecada” com os Jogos Olímpicos há já mais de um século (Shushu Chen 2019, 2). Coincidentemente, e demonstrativo da importância dada aos Jogos Olímpicos, em 1907 um funcionário da Associação Cristã de Jovens de Tianjin havia formulado um desafio provocativo destinado a estimular os sentimentos modernos e nacionalistas dos seus congéneres: «Quando poderá a China convidar todo o mundo a vir a Pequim para uma disputa Olímpica Internacional, alternando com os que se realizam em Atenas?» (Morris 2004, 2) [3].

O desporto havia provado ser verdadeira e inequivocamente eficaz no definir de uma identidade nacional e de uma sensação de pertença. Este longo processo do país para a internacionalização durante o século XX tornou-se tão mais claro como importante na sua busca por uma nova identidade nacional. A China como território e construção histórico-cultural era origem de uma grande e antiga civilização, mas a China como entidade e nação política era (e é) recentíssima. Por essa mesma razão, a grande missão chinesa durante todo o século XX foi criar um Estado-nação chinês a partir do que havia sido no passado um enorme reino dinástico multinacional e multicultural (Guoqi 2008).

Assim, a determinação da China para participar na arena internacional diplomática como um Estado-nação respeitado coincide exatamente com o crescer do movimento olímpico moderno e o crescimento do desporto como um fenómeno cultural internacional (Guoqi 2008, 268).E ainda que durante a Revolução Cultural a China se tivesse tornado mais introspetiva, com o virar do segundo milénio, e com a COI a tornar-se menos dominado pela Europa e a virar-se para o Oriente, em sintonia com o poder em mudança das dinâmicas geopolíticas globais, foi decidido que seria Pequim a receber o evento em 2008 (Horne & Whannel 2020, xv).

[3]
«When will China be able to invite all the world to come to Peking for an International Olympic contest, alternating with those at Athens

 

iii. recontextualizar a nação e a globalização nos jogos olímpicos

Tendo em consideração que a história do desporto organizado é  contemporânea do nacionalismo e do objetivo de internacionalização do Estado chinês moderno, torna-se mais fácil compreender como o país procurou usar ao máximo a oportunidade de acolher o evento que representa o cerne de todo o desporto na sua capital, como forma de, mais do que nunca, servir interesses do Estado chinês (Guoqi 2008, 215).

Para esse fim, os Jogos Olímpicos, talvez mais do que qualquer outra atividade cultural, providenciam uma perspetiva útil sobre a relação dos termos internacional e nacional, moldados pela recente fixação com o internacionalismo que serviu interesses nacionalistas, dado que a identidade nacional apenas faz sentido num contexto internacional e a sensação de pertença a uma nação apenas quando em “oposição” a outras nações, em luta pela distinção e vitória. Em suma, nacionalismo e internacionalismo são essencialmente dois lados da mesma moeda (ibid., 3).

 

soft power e internacionalização: “um facelift de 40 mil milhões de dólares” [4]

[4]
Título inspirado no título de Lee (2010).

Neste contexto, a palavra internacionalização refere-se às formas como o povo chinês ativamente se envolve e se deixa envolver por ideias, forças e tendências internacionais – um processo que coagiu a China a associar-se ao mundo exterior e ao sistema internacional. A internacionalização tem sido impulsionada por mudanças no fluxo de recursos sociais, intelectuais, económicos, ideológicos e culturais entre a China e o mundo, bem como por um novo interesse chinês por negócios estrangeiros e a sua posição entre as nações. No contexto de um processo de globalização que tem integrado continuadamente a China no sistema económico mundial, o país está ansioso por desempenhar um papel mais ativo nas relações internacionais, sendo o seu longo processo para a internacionalização igualmente importante à sua procura por uma nova identidade nacional (ibid., 2).

Por isso, talvez o ponto de partida ideal seja ponderar o interesse internacional chinês mais evidente ao receber os Jogos: a realidade comercial. Receber e organizar os Jogos, como é sabido, é extremamente dispendioso, e não é realizado apenas em nome do altruísmo global ou até mesmo só pelo patriotismo, mas sim pela expectativa de que os Jogos resultarão num ganho económico para a nação anfitriã. Hoje em dia, o impacto económico das atividades geradoras de receitas direta ou indiretamente associadas aos Jogos Olímpicos é quase incalculável, sendo que o marketing se tornou a maior destas atividades (Hogan 2003, 102).

Isto inclui também a promoção de uma imagem de Pequim como uma cidade de destino turístico. No seu estudo analítico, Gibson, Qi e Zhang (2008), ao recolherem informação sobre as conceções dos jovens americanos sobre a China antes dos Jogos, concluíram que se tem observado uma crescente consciencialização do potencial impacto que hospedar os Jogos pode ter na imagem de um país, principalmente quando se considera a cobertura mediática que o evento recebe. Isto é corroborado pelo facto de o Estado ter instruído a sua população a fim de recriar uma imagem da China nas mentes estrangeiras, publicando um conjunto de manuais para ensinar a população a causar uma boa impressão nos estrangeiros no decorrer dos Jogos Olímpicos, ao impulsionar a cordialidade e os altos padrões de higiene weisheng 卫生 (Kynge 2006, 221).

 

Anúncio publicitário lançado pelo Conselho de Turismo de Pequim em 2008, a propósito do acolhimento dos Jogos Olímpicos, em que se convida o espectador a “ser parte de Pequim” e a “desfrutar dos Olímpicos”.

 

Certamente, os Jogos Olímpicos de 2008 foram vistos como uma oportunidade rara para renovar a reputação do país, quando o mundo colocava o seu olhar sobre esta “Nova Pequim”, a antiga capital Qing, para receber os “novos olímpicos” (Kynge 2006, 221; Guoqi 2008, xi).

Este interesse em usar os Jogos Olímpicos como um “facelift” não é exclusivo da China. Efetivamente, ao acolher os Jogos de 2000 em Sydney, a Austrália procurava substituir a sua imagem de “Crocodile Dundee” por uma reputação diversificada e moderna do país. Similarmente, Atenas ambicionou em 2004 projetar uma imagem de um país moderno e eficiente (Gibson, Qi e Zhang 2008, 427). Mas também ambicionaram diminuir rivalidades nacionais, ao mesmo tempo que criaram e reforçaram novas identidades nacionais (Guoqi 2008, x). Sydney, por exemplo, idealizou gerar sentimentos de entusiasmo por orgulho nacional com consequências a longo prazo para a cidade e os seus cidadãos, apesar da natureza de curto-prazo dos eventos olímpicos (Lau, et al. 2012, 1281). Ou seja, seria apenas natural esperar que a China usasse esta ocasião para fortificar e até “re-narrar” a sua identidade nacional (Tomlinson 1996).

 

a definição de uma identidade nacional: «o desporto fornece um espelho através do qual o povo se observa si mesmo» (Guoqi 2008, 1)

Discutimos anteriormente como os Jogos Olímpicos foram utilizados como uma ferramenta internacional para a China. Mas o que podemos dizer sobre o seu uso para fomentar o sentimento de identidade nacional?

O nacionalismo envolve uma construção de narrativas lineares da nação, cultura, história e identidade. No contexto da globalização, este processo de "narração da nação" ocorre quando as pessoas negoceiam as suas relações com uma determinada nação, baseando-se nos elementos locais e globais que definem as suas fronteiras e identidades (Li 2014, 137).

No caso da China, durante o século XX o país veio a experimentar formações socioculturais, transformações e reformas que procuravam ajudar a definir a identidade nacional da China, em rápido crescimento populacional. Esta encontra dois problemas na sua busca por uma narrativa. O primeiro, uma dificuldade já anteriormente exposta, origina no facto de a China ao longo da história ter sido puramente um império multinacional, que nunca fabricou uma verdadeira consciencialização de uma identidade única “chinesa” na sua população. O segundo limite verifica-se nas implicações das suas fronteiras, principalmente em localizações que se reconstroem como chinesas pós-conflito, como é o caso de Hong Kong, Tibete, Xinjiang e, num contexto ligeiramente diferente, Taiwan (ibid. 144).

Assim, há três grandes objetivos na agenda nacionalista chinesa: primeiro, consciencializar as massas para a sua identidade e pertença à nação chinesa; apressar a aceitação da identidade chinesa por parte das populações das zonas de conflito; e, por último, consolidar o seu estatuto internacional, isolando Taiwan no mundo político (Guoqi 2008, 166-167). Como iremos ver de seguida, essa agenda transbordou para a receção dos Jogos Olímpicos e simbolicamente para a sua cerimónia de abertura.

 

iv. (inter)nacionalismo encenado: «o mundo inteiro vê os olímpicos» (Tomlinson 1996, 583)

Ainda que um indivíduo não tenha interesse em desporto, nem planeie assistir às competições que se pospõem à cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos, é quase certo que todos se encontrem colados ao ecrã para assistir ao seu começo. Por essa razão, é estimado que a cerimónia de abertura dos Jogos atraia uma audiência de cerca de 4 mil milhões de espectadores, sendo o maior evento televisivo na história da humanidade (Tomlinson 1996, 583). É um momento em que os telespectadores são convidados a sentir-se ligados uns aos outros por todo o mundo, num evento verdadeiramente global. Neste enquadramento, não é de estranhar que o evento seja talvez o elemento mais escrutinado de todo o megaevento. As cerimónias dos Jogos são ansiosamente criticadas por jornalistas, académicos, e até pela população geral, sobre o veredicto da significância de toda a encenação (ibid.).

Figura 4 – Gráfico demonstrativo do número de telespectadores dos Jogos Olímpicos, entre 2002 e 2018. O evento em Pequim foi o mais assistido neste período de tempo.

Na sua obra, Guoqi (2008) salienta como cada nação é, em grande medida, “imaginada”, e, por extensão, a forma como se representa nos Olímpicos é também uma versão imaginada de si mesma. Desta perspetiva, talvez a cerimónia imaginada por Zhang Yimou, o mais renomado realizador de cinema da China escolhido pelo Comité Organizador dos Jogos Olímpicos de Verão de 2008 (BOCOG) para ser o diretor da cerimónia de abertura dos Jogos de Pequim, seja o momento que melhor representa a determinação chinesa em aproveitar os Jogos para fins nacionalistas e de internacionalização. Aliás, «tanto as audiências de hoje como a tradição olímpica esperam uma exibição dramática e evocativa do que a cidade anfitriã e a nação mais querem comunicar sobre si mesmas» (MacAloon 1992 apud Tomlinson 1996, 523) [5].

A abertura de Los Angeles (1984) foi uma produção social encenada por profissionais de Hollywood e da indústria do entretenimento. A abertura de Seoul (1988) apresentou a Coreia do Sul como uma nação emergente capitalista e uma “economia tigre” num momento crítico dessa mesma emergência (Tomlinson 1996, 585).

A cerimónia é uma combinação de protocolos obrigatórios do COI, da iluminação da tocha olímpica, do desfile dos atletas, dos discursos pelos chefes de Estado e outros dignatários, dos hinos nacionais, mas também de um programa artístico. Esta face criativa é, no entanto, emblemática da tensão entre o internacionalismo olímpico e a intenção nacional no movimento olímpico (Arning 2013, 524).

Esta tensão entre os processos de globalização e de construção da identidade nacional está enraizada nas cerimónias e espetáculos de eventos como os Jogos Olímpicos, em que valores alegadamente universais como o "ideal olímpico" são reformulados em diferentes tempos e lugares, uma vez que histórias e culturas particulares são trazidas a suportar essa reposição do ideal. A cerimónia não é uma ideia olímpica simples, com valores puros e imaculados, é no fim de contas um movimento que foi concebido no período de emergência e consolidação dos primeiros Estados-nação modernos, instigado por tensões e contradições, moldado por uma imagem do tempo e espaço em que decorre (Tomlinson 1996, 599).

Foi nestes termos que, a 8 de agosto de 2008, a Televisão Central da China (China’s Central Television [CCTV]) e outras emissoras por todo o mundo transmitiram a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos realizada em Pequim. Carregada de símbolos de essência chinesa e orgulho nacional, tais como a bandeira nacional, a cerimónia alternava entre a história da China, a modernidade, e a globalização, retratando a nação chinesa e a história como uma narrativa linear, cronológica, multifacetada e unificada. Ao analisar as várias relações históricas e socioculturais reconceptualizadas e recontextualizadas na cerimónia de abertura, mostraremos como estas relações intradiscursivas constituem significados relacionados com a identidade nacional e a globalização da China (Leibold 2010, 8).

[5]
«Both present audiences and Olympic tradition have come to expect a dramatic and evocative display of what the host city and nation most want to communicate about themselves»

 

internacionalismo e soft power na encenação

A China precisava de acolher os Jogos Olímpicos para estabelecer a sua estratégia de comunicação internacional. Queria juntar-se ao sistema internacional dominado pelo Ocidente e via os Jogos Olímpicos como uma forma de o conseguir. Reiterando, os Jogos de Pequim foram vistos como um grande evento mediático mundial, um foco para comunicar uma imagem cuidadosamente construída da China ao mundo, principalmente ao Ocidente, não só às potências como também às suas populações (Chen, Colapinto & Luo 2012, 188).

A opinião pública sobre a China, principalmente a ocidental, não era a mais positiva, e, coincidentemente, não foram abruptas as controvérsias culturais, políticas e ideológicas que precederam os Jogos organizados pelo país, durante os anos, meses e semanas que precederam o evento (Arning 2013, 539). 

Antes dos Jogos de Pequim, jornalistas de todo o mundo não mediram esforços para conhecer a "verdadeira" China e revelá-la à sociedade global. O relato ocidental do papel da China como nação anfitriã dos Jogos Olímpicos centrou-se em discursos em torno das questões políticas e ambientais que assolavam a China, incluindo a poluição atmosférica em Pequim, os despejos forçados, os ativistas dos direitos humanos e os dissidentes, a corrupção, a segurança pesada e a agitação social em regiões étnicas da China, como Xinjiang e Tibete. Adicionalmente, durante a transferência internacional da chama olímpica em abril de 2008, os relatos dos média ocidentais focaram-se nas perturbações durante a transferência em Londres, geradas pela presença de manifestantes pró-tibetanos (Li 2014, 150).

Figura 5 – O estádio olímpico em Pequim envolto em poluição atmosférica. Múltiplos órgãos de comunicação lançaram notícias acerca dos altos níveis de poluição – mais altos que em qualquer outra edição – em que os Jogos foram realizados. © Ry Tweedie-Cullen

A cerimónia de abertura e o Comité Organizador dos Jogos Olímpicos tiveram, portanto, de responder às perceções negativas do país por parte do público internacional, ao proclamarem revelar a globalizada e “verdadeira” China, que podia oferecer ao mundo mais do que simplesmente um “Made in China (Chen, Colapinto e Luo 2012, 194). Em segundo lugar, do ponto de vista chinês, a cerimónia de abertura representou um momento significativo para mostrar ao mundo a sua magnificência passada e presente (Tomlinson 1996; Chen, Colapinto & Luo 2012, 191; Li 2014).

A narrativa da cerimónia foi assim a de uma nação multifacetada, mas coerente, e foi em muitos aspetos uma resposta a várias construções mediáticas em torno da nação chinesa, bem como uma tentativa de a China negociar várias tradições, relações e conflitos a nível nacional, subnacional e global. Por outras palavras, a cerimónia foi um instrumento de soft power para dar um “facelift” à nação (Li 2014).

Com a crescente influência da China como potência económica e como ator político no panorama internacional, o governo passou a prestar mais atenção ao desenvolvimento e ao controlo do soft power através de uma estratégia de comunicação internacional. E certamente o soft power, cada vez mais valioso num mundo multipolar, ajusta-se perfeitamente às cerimónias de abertura dos Jogos Olímpicos. Estas são visualmente dramáticas e empregam representações abstratas da conjuntura imaginada e idealizada pelo anfitrião dentro do estádio olímpico. A cerimónia de abertura é um grande espetáculo com um texto semiótico complexo, que procura oferecer a “atratividade” da nação a partir de técnicas típicas, que não foram unicamente usadas pela China, mas também pelos vários Comités Organizadores dos Jogos Olímpicos, fazendo uso de ferramentas retóricas para impressionar, apaziguar e cumprir várias tarefas ideológicas (Tomlinson 1996; Nye 1990; Li 2014).

Esta representação de soft power usa metodologias como a orquestração em massa. Moscovo 1980 e Seoul 1988 foram exemplos da mobilização de um grande número de pessoas. No entanto, Moscovo, em particular, exibiu metafórica, mas não tão disfarçadamente, o poder militar soviético, em contexto de Guerra Fria. Pequim foi também exemplar no uso desta tática, definida pelo perfeccionismo da coreografia que apresentou. A sequência dos tocadores de tambor foi a mais impressionante sincronização de ritmo visual e auditivo alguma vez vista até então (Figuras 1 e 2). Ao estilo de uma genuína mensagem de soft power, a cena de dois mil e oito tocadores de tambor em sincronia e harmonia equivale à de um país que, ainda que numeroso, é coordenadíssimo (Chen, Colapinto e Luo 2012, 188, Li 2014).

Figuras 6 e 7 – Tocadores de Fou e a sua coordenação harmoniosa. © Fabrice Coffrini © Cameron Spencer

Também se pode observar a narrativa de soft power através da destreza tecnológica, principalmente quando associada ao desenvolvimento e sucesso económico (Chen, Colapinto & Luo 2012, 191), que as cidades anfitriãs procuram conotar com a contemporaneidade e o progresso através de feitos tecnológicos em palco. Dado que a tecnologia é posta ao serviço do entretenimento e da fantasia, trata-se de uma forma inteligente de expor mensagens de soft power sob o pretexto do espetáculo. Moscovo 1980 apresentou uma mensagem em direto de astronautas no espaço, Los Angeles 1984 surpreendeu o mundo ao aterrar um Jetpack no meio do estádio, Seoul 1988 criou os anéis olímpicos no céu com uma equipa de paraquedistas coordenados e Barcelona 2000 fez a primeira projeção de luzes. Mas foi em Pequim que pela primeira vez se usaram luzes LED (Figura 3), tanto para exibir a sua contemporaneidade, como para representar a antiguidade, como símbolos do Iluminismo e, por extensão, do civismo. O inovador espetáculo de luzes foi tão inesquecível e marcante que abriu um precedente para futuras cerimónias de abertura (Chen, Colapinto & Luo 2012, 191).

Figura 8 – Formação de Pomba LED. Fonte: Chen, Colapinto & Luo 2012, 189.

Figura 9 – Formação dos Analetos em palco. Fonte: Chen, Colapinto & Luo 2012, 189.

A grandeza musical é outro recurso usado para promover o soft power, numa composição projetada para seduzir e atordoar públicos estrangeiros, ao mesmo tempo que leva o público doméstico numa viagem de sentimentos de afinidade e nostalgia para com os sons nacionais. Insolitamente, um ponto pelo qual a abertura de Pequim foi criticada foi a falta de descompressão humorística (Arning 2013, 532), comum em quase todas as outras aberturas (a título de exemplo, o breve momento humorístico com a figura de Mr. Bean nos Jogos de 2012).

Por último, tendo sempre em mente que quando a cultura de um país promove valores universais com que as outras nações se podem facilmente identificar isto torna-a naturalmente mais atrativa aos outros, o alcance da reprodução da cultura é importante para a construção de soft power (Arning 2013, 539). Por essa razão, talvez o elemento de soft power mais emblemático de todo o evento tenham sido os momentos de representação seletiva da cultura chinesa, demonstrando nomeadamente a harmonia confucionista (Chen, Colapinto & Luo 2012, 188).

O diretor das cerimónias de abertura e de encerramento, Zhang Yimou, admitiu ter direcionado o seu foco principalmente para as audiências estrangeiras, defendendo que «assim como a comida chinesa autêntica não se adequa ao palato dos estrangeiros, também a cultura chinesa teria de ser adaptada para se adequar aos gostos estrangeiros» (apud Leibold 2010, 23) [6]. Para o diretor, os Olímpicos eram uma oportunidade excelente para dar ao mundo um gosto do romance tradicional chinês, e, seguindo essa mesma convicção, selecionou cuidadosamente para a abertura os símbolos da cultura chinesa que melhor se adequavam a esse caráter romântico e magnânimo. Observado como um êxito no seu projeto, o Diário do Povo comentou posteriormente à abertura: «O mundo deu-nos 16 dias, e nós vamos dar ao mundo 5000 anos [de] um banquete cultural requintado» (apud ibid.) [7].

A abertura foi assim dividida artisticamente em dois segmentos, o primeiro intitulado “Civilização Brilhante”, que proporcionou uma ágil passagem pela história chinesa imperial, e o segundo chamado “Era Gloriosa”, projetando a contemporaneidade chinesa e o seu desejo por um futuro global com algumas das “características chinesas” (ibid.), principalmente com imagens relacionadas com “harmonia e paz”, “unidade” e “poder e inovação”. Estes temas estão sobretudo relacionados com o renascimento dos valores culturais tradicionais chineses baseados no confucionismo, cujo elemento central é a harmonia. Estes foram certamente os temas que dominaram a cerimónia de abertura, entregue através de símbolos geralmente reconhecidos. A unidade diz respeito tanto à unidade nacional (a China como país de múltiplos grupos étnicos), como à unidade entre os seres humanos, apesar das diferenças culturais e étnicas. O poder e a inovação carregam a dupla mensagem de que a China deu importantes contributos para a “civilização” e o desenvolvimento globais (Chen, Colapinto & Luo 2012, 188-194), contando com as “quatro grandes invenções” da Antiga China – a produção de papel, a impressão móvel, a bússola e a pólvora –, criando uma ligação entre a antiga grandeza e o papel atual da China. Estes elementos foram cuidadosamente tecidos na abertura como destaques da civilização chinesa (ibid.). Outros símbolos culturais como a Rota da Seda e a “Rota Marítima da Seda” de Zheng He não foram esquecidos, e, aliás, assumiram o palco central, descritos em tempo real pelos comentadores televisivos estrangeiros como o “Colombo chinês”, que espalhou a cultura e os bens chineses até à África e possivelmente para além dela (Leibold 2010, 21).

[6]
«just as authentic Chinese food does not suit the palate of foreigners, so too would Chinese culture need to be adapted to suit foreign tastes»

[7]
«The world has given us 16 days, and we will give the world 5000 years [of] an exquisite cultural banquet»

Figura 10 – Segmento da cerimónia em que a performance celebrava a Rota da Seda. © Wikimedia Commons

A própria representação de Confúcio em palco foi deliberadamente disposta para elevar a sua capacidade de fundir diferentes povos, com a emblemática leitura por 3000 discípulos confucionistas (Figura 4) que receberam os convidados com a frase de abertura dos Analetos: «Não é agradável ter amigos que venham de lugares longínquos? (Youpeng zi yuanfang lai, bu yi le hu? 有朋自远方来、不亦乐乎?)» (ibid., 17) [8]. Similarmente, a delicadeza da pintura em linha no pergaminho veio a ser apreciada como um sinal de foco estético que traça a evolução do caráter de harmonia “wa” (Arning 2013, 525).

Desta forma, através de um encantamento estético, em Pequim os elementos da cultura visual chinesa apareceram para embelezar e suavizar toda a encenação, como meio de alcançar, como referido anteriormente, a promoção da e a aproximação à China e a neutralização da negatividade em torno desta, através da retórica da suavidade e empatia, mas também para demonstrar o seu passado grandioso e os seus contributos para o avanço tecnológico, tanto no passado como no presente (e representando esses avanços passados através dos avanços presentes) (ibid.). Olhando uma última vez para a Figura 4, podemos observar essa dicotomia, um analecto a formar-se por via da modernidade.

[8]
«Is it not delightful to have friends coming from distant quarters

 

encenação da nação e a sua reconstrução

A cerimónia de abertura dos Jogos de Pequim apresentou a imagem de um país vasto, populoso e multidimensional em que diferentes tradições, etnias e grupos se uniram sob uma só nação, história, cultura e identidade chinesas.

Mais uma vez, esta procura de construção de uma identidade nacional a partir dos Jogos Olímpicos e da cerimónia de abertura em particular não é singular da China; construções étnicas de essência japonesa, australiana e americana nas suas cerimónias de aberturas em Nagano 1998, Sidney 2000, e Salt Lake City 2002, respetivamente, já apresentaram no passado este discurso. O Japão, em particular, usou a sua abertura em Nagano para reforçar a sua homogeneidade étnica e particularidade cultural (Hogan 2003, 100).

Nada é melhor para explicar o desejo do Estado de solidificar esta construção discursiva do povo chinês do que a escolha da cobertura da CCTV como base para as intenções e agendas do Governo chinês e do BOCOG em relação às audiências domésticas. Embora a cerimónia celebre ostensivamente todas as nações participantes, na prática, tanto elementos obrigatórios como interpretativos espelham os valores e as experiências da nação anfitriã. Esta narrativa serve não só como uma afirmação da identidade nacional, mas também como um anúncio alargado da nação anfitriã e uma oportunidade para promover o turismo, o investimento corporativo internacional, o comércio e as ideologias políticas (Leibold 2010, 1).

No entanto, a narrativa simbolicamente delineada para a adesão à “comunidade imaginária” nacional é talvez o assunto mais delicado de todo o evento (ibid., 2). Os académicos retratam frequentemente o nacionalismo chinês como "incoerente", "conflituoso" e "amorfo" (ibid., 8-10), porque, ainda que o discurso oficial da República Popular da China (RPC) [9] repouse sobre um multiculturalismo que transmite unidade na diversidade, ou duoyuan yiti 多元一体 (“muitas fontes, um corpo”), como estrutura nacional, inevitavelmente tais construções de identidade nacional, por natureza própria, resultam em atos de inclusão e exclusão (ibid.).

A cerimónia de abertura dos Jogos forneceu uma representação nítida do multiculturalismo leninista [10] duoyuan yiti, defendido pelo Estado. A diversidade étnica dirigida por Zhang Yimou tomou o centro do palco no início da cerimónia com o desfile de cinquenta e seis crianças vestidas em trajes étnicos tradicionais (Figura 5), enquanto carregavam a bandeira da RPC ao longo do estádio antes de a entregar aos soldados do Exército de Libertação Popular, juntando-se todos para cantar o hino, cujo refrão é “Milhões de corações com uma mente”.

[9]
Quando nos referimos à RPC não nos reportamos à Nação, a qual optámos por designar pelo termo China ao longo do ensaio. Aqui não falamos somente da China, mas do Estado e partido que a governa, ou seja, ao usar-se o termo RPC pretendemos realçar as decisões do Partido Comunista Chinês e a sua agenda política.

[10]
Sendo evidente o inspirador deste termo, o multiculturalismo leninista, muito sucintamente, pode ser compreendido como um dos vários princípios socialistas-comunistas, que procurava desconstruir o desenho da comunidade política a que pertence o homem na nação dentro do Estado soberano para impor a ideia de pluralidade de pertencimentos. Isto significa que a perspetiva conservadora que preconiza herança e memória a partir das categorias tradicionalmente concebidas, como nação, família e povo, seria substituída por uma formação da comunidade política mundial (Silva 2019).

Figura 11 – Grupo étnico de crianças chinesas – diversidade na unidade. Fonte: Chen, Colapinto & Luo 2012, 192.

No entanto, segundo Leibold (2010), por detrás desta fachada ordenada de multiculturalismo chinês encontram-se profundas fissuras de etnocentrismo. Nos dias que se seguiram à cerimónia de abertura cuidadosamente orquestrada, o Asian Wall Street Journal revelou que as "crianças minoritárias" em exibição eram na verdade atores han [11] profissionais do Galaxy Children's Art Troupe. Em resposta ao incidente, o vice-presidente do BOCOG, Wang Wei, rejeitou as críticas dos média estrangeiros, afirmando que isso era «completamente normal» na tradição chinesa (apud ibid., 8).

Embora este ato de "falsificação" reflita o desempenho encenado da cultura minoritária na China contemporânea e a tentativa de representar uma unidade utópica moderna de uma forma mais geral, também destaca algumas das tensões desordenadas na visão de Pequim de uma sociedade harmoniosa e multiétnica (ibid.).

Tornou-se bastante claro que apenas existem três grandes vencedores que beneficiaram das narrativas construídas no palco olímpico (Hogan 2003, 118-120). Primeiro, os que tinham interesses financeiros, como fabricantes, prestadores de serviços, emissoras, firmas de publicidade e outras empresas com fins lucrativos que lucraram financeiramente com a construção de discursos étnicos amplamente digeríveis da identidade nacional. Segundo, o grupo étnico e socialmente dominante que partilha das características que foram refletidas durante toda a abertura, ainda que indiretamente. E claro, o terceiro e maior vencedor, o Estado, pelas razões anteriormente explicitadas.

Ao promoverem este estilo de patriotismo, os organizadores olímpicos esperavam incentivar o orgulho nacional na identidade chinesa, espalhando-o inclusive por toda a comunidade internacional. No entanto, ao focarem a sua atenção ao nível da China e das outras nações olímpicas em muita da sua propaganda internacional e doméstica, internamente a diversidade da identidade chinesa veio a desvanecer em grande parte do discurso olímpico. Isto estimulou as já existentes tensões, tornando o discurso olímpico dos Jogos de Pequim na prática um discurso nacional conflituoso e perturbado, revelando as várias fissuras latentes na própria composição do Estado-nação chinês e na sua identidade nacional (Leibold 2010, 8-10).

Tendo em consideração a agenda nacionalista anteriormente explicitada, que procura reforçar a identidade chinesa em regiões de tensão identitária, como Hong Kong, esta maior aposta na vertente de internacionalismo significou que o soft power a nível interno talvez não tenha sido tão bem-sucedido como se procurava. Estudos como o The Longitudinal Changes of National Identity in Mainland China, Hong Kong and Taiwan e Did the Olympics Help the Nation Branding of China? (Lau, et al. 2012), assim como Comparing Public Perception of China with the Olympics Before and After the 2008 Beijing Olympics in Hong Kong (Lee 2010), apontam para um leve crescimento deste sentimento de pertença e identidade chinesa, no entanto temporário. Por outras palavras, nem a abertura, nem os Jogos, com as suas construções de identidade nacional, serviram como ferramenta para lidar com sucesso com as populações do vasto país que se encontram nas margens desta identidade. No entanto, o mesmo não pode ser dito sobre a exaltação do orgulho nacional que se observou nas regiões “tipicamente” chinesas, e que se encaixaram perfeitamente na narrativa exposta em palco (Li 2014, 138).

[11]
Han pode ser entendida como a etnia maioritária no território chinês, em contraste às outras etnias presentes, como Uigures, Hakka, Hui, e muitos outros.

 

conclusão

Em suma, a cerimónia de abertura em Pequim foi extraordinária, bastando recordar as imagens disponibilizadas ao longo deste ensaio para percebermos como até hoje aquela encenação continua a causar fortes sentimentos. Mas foi-nos possível descodificar uma outra razão, e talvez mais profunda ainda, para ser considerada verdadeiramente fenomenal, como um momento muito importante na história dos Jogos Olímpicos e da China: o uso da cerimónia olímpica como instrumento de soft power para tentar mudar a ideia do mundo sobre quem era a China e como queria que o mundo a observasse – uma grande potência, unida, diversificada e coordenada, tecnologicamente inovadora, mas também uma grande força cultural.

Nesta perspetiva, os Jogos de 2008, e a sua abertura, foram significativos porque desafiaram o domínio ocidental dos eventos globais e colocaram a China nos holofotes internacionais, refletindo a sua crescente importância global. O Governo chinês construiu assim as bases para uma campanha mediática massiva, tanto interna como externamente, numa tentativa de construir a identidade e a imagem nacionais da China no mundo, um braço vital da sua agenda de soft power. Não obstante, esta agenda também teve alvos internos, enviando mensagens aos chineses sobre o seu país e o seu lugar nele.

No entanto, um olhar mais atento sobre os preparativos e a encenação dos Jogos revela profundas tensões no próprio tecido da nação chinesa, das agitações em torno da etnia e da própria identidade nacional, numa China que se mantém um Estado com uma forma nacional inconclusiva e conflituosa.

A curta análise aqui feita refletiu sobre a cerimónia como estando envolvida num processo de negociações e reconciliações constantes entre o histórico e o contemporâneo, entre o local e o global, e entre os valores culturais chineses e os ideais olímpicos universais. Estas negociações e recontextualizações apresentaram uma visão da história e da nação chinesas que se entrelaçam com a globalização, construindo-a como condição histórica na China, bem como uma preocupação global que estava enraizada e alargada ao contexto nacional chinês imediato. Ainda assim, este trabalho coloca mais questões do que aquelas a que procurou responder. Quem são as pessoas desta nação? De quem é a imagem que os organizadores do evento esperavam projetar para o olhar de sondagem do mundo?

É verdade que a abertura das cerimónias é encenada como propaganda artificial, mas também não há nada no mundo realmente parecido com a abertura dos Jogos Olímpicos, em que há uma combinação de teatro, cinema e tecnologia ao serviço da narração de uma história sobre um país. E se soubermos ler essa encenação, conseguimos encontrar significado no que o país quer comunicar, o que, no caso que analisámos, se traduz na promoção de uma narrativa imaginada de “(inter)nacionalismo”. 

Após todo este exercício de análise, sugerimos ao leitor que visite, ou revisite, agora com um novo olhar sobre todas as cenas apresentadas, esta abertura, que se encontra disponível no youtube:  https://www.youtube.com/watch?v=bufV3EgyPGU

Numa última nota, é também de grande importância recusar que se assuma superficialmente que este evento foi para a China uma “propaganda” mundial e nacional, um termo com conotações negativas no Ocidente até hoje (Ginsberg 2013), e que levará à assunção de que a China é uma “Nação vilã” que procura dominar o mundo, ou conceções semelhantes que se têm feito surgir na atualidade. Não é de todo esse o objetivo do presente ensaio, que procura somente analisar a abordagem da China para cumprir a sua agenda internacional e nacional usando os Jogos Olímpicos para tal. Adicionalmente, vimos ao longo do trabalho que os Jogos são constantemente utilizados pelas nações que recebem o evento para verem cumpridos diversos objetivos, em todas as suas edições.

 

Para citar este ensaio:

Cavaquinho, Maria Catarina. 2021. “Jogos Olímpicos de Pequim: Narrativa de (Inter)Nacionalismo.” Palimpsesto. www.palimpsesto.online/ensaios/jogos-olimpicos-de-pequim-narrativa-de-internacionalismo.

 

referências ↓

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