a reconfiguração da democracia portuguesa pela geringonça
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Sobre a Pessoa Autora
Do interior para a capital para obter a licenciatura em Ciências da Comunicação, com vertente em Comunicação Estratégica, na NOVA FCSH. Atual mestranda em Ciência Política e Relações Internacionais com especialização em Estudos Europeus, nesta mesma instituição. Tamanha reviravolta nos estudos talvez tenha que ver com o insaciável gosto por atividades comunitárias que desde cedo despertou e criou a ambição (quiçá devaneio) de poder, tal como diria Baden-Powell, «deixar o mundo um pouco melhor do que o encontraste».
Resumo
O presente artigo pretende analisar as eleições legislativas portuguesas realizadas a 4 de outubro de 2015 e todo o processo atípico consequente para a formação de governo. Partindo da exploração dos resultados eleitorais e de pressupostos que os clarificam, segue-se a análise do processo de formação de governo mais alongado da história da democracia portuguesa, através de uma abordagem tecno-descritiva, em que os factos decorridos são relatados, correlacionados com as condições técnicas e legais que os consentiram, e confrontados com teses teóricas. Posteriormente, uma vez que a formação da Geringonça foi um marco na história da democracia portuguesa, este estudo percorre as razões de raiz histórica que levaram à criação do “arco da governação” e que, por conseguinte, impediram o entendimento da esquerda plural, bem como as condições que, noutro momento, abriram caminho para o rompimento dessa dinâmica que perseverava há 40 anos que teve como resultado o entendimento entre as esquerdas após as eleições legislativas de 2015. Assim, pretende-se responder à questão “como foi possível a formação do contratualismo parlamentar inédito da Geringonça na democracia portuguesa?”. É de realçar, porém, que não existe uma razão única para este fenómeno, mas antes um conjunto de condições e fatores situacionais, contextuais e estruturais que permitiram todo o desenrolar da formação da Geringonça.
1. resultados eleitorais e justificações plausíveis
2. do período de governação mais curto à formação de governo mais prolongada da história da democracia portuguesa: o processo
Ainda assim, «a cooperação entre o PS e o PSD tem desempenhado um papel central na dinâmica do sistema partidário» (Jalali 2003, 550) e, portanto, «a princípio, a situação parecia destinada a seguir a política do costume» (Fernandes 2016, 896) [26], ou seja, «o governo de direita minoritário formaria governo com o apoio tácito dos socialistas [PS]» (ibid.) [27]. Esta solução é possível na democracia portuguesa graças ao “parlamentarismo negativo”; por outras palavras, não é necessário um apoio maioritário na Assembleia da República para se ser empossado (o designado “voto de investidura”, que, por exemplo, acontece em Espanha ou, a nível supranacional, na investidura da Comissão Europeia pelo Parlamento Europeu). Ainda assim, conforme o Art. 195.º, al. d) da Constituição da República Portuguesa (CRP), o partido mais votado, para permanecer no governo, necessita, entre outros, de evitar a rejeição do seu programa por uma maioria absoluta no Parlamento. No entanto, é importante notar que esta possibilidade foi introduzida pela CRP de 1976 com «um propósito muito definido em mente: facilitar a inauguração de governos socialistas minoritários e, através disso, abordar o desequilíbrio no sistema partidário que tornava coligações vencedoras com um resultado mínimo possíveis à direita, mas impossíveis à esquerda» (Teles apud Fernandes, Magalhães & Pereira 2018, 506) [28]. Dessarte, ainda que a democracia portuguesa tenha sido constituída com uma «marca de esquerda» (Giorgi & Cancela 2019, 4) [29], «Portugal tem um sistema partidário enviesado para a direita» (Freire 2017, 33), o que foi significativamente auxiliado pela introdução desta possibilidade, que acabou por ajudar mais a direita, visto que «a esquerda portuguesa se manifesta principalmente na falta de solidariedade e disponibilidade para cooperação entre si» (Heilig apud Lisi 2016, 542) [30]. Além do apoio parlamentar, uma segunda solução poderia ter sido a formação de uma segunda coligação pós-eleitoral, ao estilo do Bloco Central (1983-1985), entre o PSD e o PS, porém, desta vez, o CDS não seria deixado fora da aliança por efeito da coligação pré-eleitoral Pàf. Esta solução só seria possível porque «na sua essência, o PS e o PSD – à semelhança dos seus correspondentes espanhóis – são partis de electeurs, partidos catch-all, com a sua característica flexibilidade e indefinição ideológicas» (Gunther et al. apud Jalali 2003, 551). Contudo, esta saída apenas aprofundaria o não-entendimento entre o PS e os partidos à sua esquerda, pois, segundo Soares, «o bloqueamento hegemónico em que o ‘bloco central’ quis transformar a vida política portuguesa não alimenta qualquer esperança quanto a coligações» (apud Freire 2009, 36). Ademais, no contexto em que se encontrava, o PS sofria já consequências negativas, tanto ao nível do eleitorado como em relação aos partidos à sua esquerda, por ter reiterado o pacote de austeridade da Troika com o PSD e o CDS (o BE, o PEV e o PCP recusaram), e por ter «votado a favor ou ter-se abstido de votar nos mais importantes pacotes nos primeiros 15 meses da atual legislatura» (Giorgi, Moury & Ruivo 2015, 55) [31], bem como apenas ter «mudado de estratégia e votado contra o orçamento de 2013 em novembro de 2012» (ibid.) [32] (ibid.). Por isso mesmo, nenhuma das anteriores opções pareciam viáveis na manutenção do futuro do PS. Deste modo, restava uma única opção, segundo a qual «poderá ser o segundo partido mais votado a comandar o governo, se for capaz de liderar uma alternativa no Parlamento, e o vencedor com maioria relativa pode passar à oposição (…) – solução não só plenamente democrática como muitíssimo comum» (Freire 2017, 163), contrariamente ao entendido pela maioria dos demais [33], que alegavam «"ilegitimidade democrática” em caso de solução de governo que juntasse o PS com os partidos à sua esquerda» (Freire 2017, 163). Segundo Freire (2017), esta seria uma solução concordante com a teoria e a prática democrática, tanto na Europa (pensemos no caso da Espanha que, coincidentemente, nas eleições legislativas de 2015, apesar de os conservadores do PP terem obtido a maioria relativa em diversas comunidades autónomas de Espanha, foram os socialistas do PSOE que governaram nas mesmas, ou em solução minoritária com apoio parlamentar – que não o do PP –, ou através de coligação) como no resto do mundo (tomemos como exemplo o sistema semipresidencialista de Timor-Leste, estruturado à imagem do português, onde a esquerda pós-marxista Fretilin ganhou as eleições de 2007 com maioria relativa, mas quem governou foi o CNRT, liderado por Xanana Gusmão, com o apoio parlamentar de outros partidos). Por conseguinte, é também congruente com o constitucionalismo português.
Tendo em conta toda a conjuntura tecno-legal, não só esta solução era possível no campo jurídico como na prática, dado que a esquerda plural (PS, BE, CDU e PAN) reuniu uma maioria absoluta com 52,15% dos votos. A obtenção de uma maioria absoluta por parte da esquerda plural em simultâneo com uma vitória da direita (em coligação ou a solo) só teve lugar em 1985; porém, nessa altura, isso não representava qualquer perigo iminente para a direita, uma vez que, como referido antecipadamente, as esquerdas ao longo da história portuguesa nunca foram capazes de formar entendimentos. De facto, tem existido uma
«exclusão sistemática do Partido Comunista do governo a partir de 1975, em grande medida resultado do papel desempenhado pelo PCP durante o período revolucionário de transição democrática de 1974-1975 e do seu apego à ortodoxia marxista-leninista. Esta exclusão continua a ser um aspecto fundamental ao nível sistémico e, desse modo, também ao nível dos alinhamentos eleitorais» (Jalali 2003, 550)
criando um cordon sanitaire (cordão sanitário) em torno dos partidos que se encontram à esquerda no espetro político (Fernandes 2016, 896) – temática que iremos desenvolver no ponto seguinte. Desta forma, a questão que se colocava em outubro de 2015 era se, após 40 anos, as esquerdas seriam capazes de esbater as suas divergências e alcançar um entendimento. Se por um lado se levantava este problema aos partidos de esquerda, por outro, anteriores sondagens, que previam a maioria relativa da coligação Pàf, exibiram a preferência do eleitorado por um governo de coligação de esquerda [38]. Nesse sentido, já em 2009, o eleitorado tinha exibido «inquestionável vontade de que se gerasse um entendimento entre os partidos de esquerda» (Freire 2017, 61) (Figura 5). Alguns dias após as eleições, percebeu-se a improbabilidade de um acordo entre Pàf e o PS no apoio de um governo minoritário constituído por Passos Coelho, o então líder do PSD, como Primeiro-Ministro. Quanto a este ponto existem duas opiniões distintas: por um lado, alguns observadores interpretam esta decisão como estando baseada no destino negativo do partido socialista grego PASOK, face à sua disposição para constituir uma coligação com o partido de centro-direita ND; outros, por outro lado, acreditam que António Costa queria torna-se Primeiro-Ministro e, por isso, não aceitaria um segundo acordo de apoio a um governo minoritário de Passos Coelho, perante a possibilidade de ele próprio se tornar Primeiro-Ministro, ainda que para isso necessitasse do apoio da esquerda radical (Giorgi e Pereira 2016, 464) [39]. Consideramos, no entanto, que terá sido uma junção de ambos, visto que diversas teorias acerca da formação de coligações reiteram que «os partidos políticos são "atores racionais" e procuram maximizar ou os cargos ou o programa político» (Strøm & Müller apud Lisi 2016, 541) [40], de modo a, por um lado «maximizar a sua parcela das vantagens de governar» (ibid.) [41] e, por outro, «maximizar a sua influência na criação de políticas» (ibid.) [42].Contrariamente ao que o contexto nacional exibia, mas conforme a nomeação do Presidente da República, a 30 de outubro tomava posse o XX Governo Constitucional, com Passos Coelho como Primeiro-Ministro. Todavia, no dia 8 de novembro, era anunciado o alcance do entendimento entre a esquerda plural através de três acordos bilaterais estabelecidos entre os partidos – PS-PCP; PS-BE; PS-PEV – que foram assinados no dia posterior, com o apoio parlamentar do PAN. O entendimento encontrado pode ser descrito como “parlamentarismo contratual”, acordo político-organizacional frequentemente utilizado em países escandinavos e na Nova Zelândia (Bale e Bergman 2006), entre outros. Este define-se da seguinte forma: «governos de minoria formal (formados ou por um único partido, ou por uma coligação de partidos) têm relações com os seus partidos de "apoio" que são tão institucionalizadas que os fazem aproximar-se de governos de maioria» (ibid., 422) [49] (Figura 6). Ademais, esta relação baseia-se num «contrato explicitamente escrito com um ou mais partidos que ficam fora do governo» (ibid., 424) [50] que «compromete os parceiros para além de um acordo específico ou um compromisso temporário» [51] e «deve estar acessível ao público» (ibid.) [52]. No presente caso e como antecedentemente mencionado, «os Socialistas assinaram três acordos bilaterais com o BE, o PCP e o PEV, resultantes de três processos de negociação parcialmente separados» (Fernandes, Magalhães e Pereira 2018, 510) [53] e, por isso, uma «característica única do governo de Costa neste aspeto é que, ao contrário de situações análogas na Europa, não houve um acordo multilateral unificado» (ibid.) [54].
A questão que se coloca é porquê agora? Quais as condições que tornaram viáveis o entendimento da esquerda plural e a consequente formação da Geringonça? O que se alterou ao longo dos 40 anos da história da democracia portuguesa que possibilitasse este entendimento de esquerda que até então tinha sido impossível? É do que tratará o próximo ponto.
3. a queda do “arco da governação”: circunstâncias, causas e consequências
Todavia, deu-se o término da Guerra Fria e a inexistência de um entendimento entre a esquerda plural permanecia em vigor, contrariamente aos restantes países europeus que, após a simbólica queda do Muro de Berlim (1989), começaram a manifestar entendimentos à esquerda. Freire (2017) indica seis razões para a impossibilidade de entendimento dos partidos de esquerda portugueses. Desde logo, «as caraterísticas institucionais do sistema político» (84), sendo que a arquitetura constitucional apenas exige a não-rejeição do programa do governo, favorecendo a formação de governos minoritários, como analisado previamente. Como resultado, acaba por não existir uma promoção da cooperação entre partidos. Ainda assim, o autor entende que este fator não poderá ser decisivo, dado que a direita tem sido capaz de alcançar diversos tipos de entendimentos com sucesso, como indicado anteriormente. Em segundo lugar, «mesmo com a resolução do conflito sobre a natureza do regime e a convergência dos comunistas com a noção de democracia representativa, a sua oposição à NATO, à integração europeira, e ao euro» (Cunha apud Fernandes, Magalhães e Pereira 2018, 506) [70] permanecia uma divergência inconciliável. Por outras palavras, «as distâncias ideológicas […] entre o PS e os partidos à sua esquerda têm sido sempre maiores do que as distâncias ideológicas entre o PS e o PSD» (March & Freire apud Freire 2017, 84), o que resulta das suas caraterísticas de partidos catch-all. Portanto, «não será tanto um excessivo radicalismo ideológico da esquerda radical portuguesa a obviar a tal entendimento, mas mais um excessivo centrismo dos socialistas» (Freire 2017, 89), o que foi acentuado através do «seu comportamento legislativo no Parlamento entre 2011 e 2014 […] [que] estava muito mais próximo do da direita do que da esquerda radical» (Freire, Lisi & Lima apud Freire 2017, 198). Este posicionamento fundamenta-se no facto de que «os partidos mainstream e tradicionalmente pró-Europa (primeiro o PSD e depois o PS) comportam-se menos como adversários do que em tempos normais, sendo o exato oposto verdade no caso do PCP e do PEV, dois partidos mais radicais e eurocéticos» (Georgi, Moury & Ruivo 2015, 71) [71]. Neste sentido, Lisi (2011) afirma que o PS evitou coligações com o PCP para não perder os seus eleitores centristas (apud Freire, 2017, 90). Contudo, Freire (2017) reitera que ambos os pontos do argumento do distanciamento ideológico devem ser relativizados, uma vez que não só o espetro político é representativo de uma escala abstrata, como partidos europeus de esquerda com distâncias ideológicas semelhantes conseguiram alcançar entendimentos entre si. A terceira razão prende-se com a divisão profunda do sindicalismo português «em duas grandes centrais, uma mais próxima da esquerda radical (a CGTP-IN [72]) e outra, a UGT [73], que é uma espécie de “bloco central” socialista/social-democrata mais próxima do centro político (PS e PSD)» (Freire 2017, 14). Neste sentido, «não houve pressão por parte dos sindicatos para uma maior cooperação entre esquerdas, conforme se verificou noutros países» (Bale & Dunphy apud Freire 2017, 197) o que explica, em parte, a inexistência de uma tendência para a formação de governos constituídos por uma esquerda plural. Num outro vetor, «tem sido apontado internacionalmente como propiciador/facilitador das coligações de esquerdas ao nível nacional […] a frequência de tais ligações coligações ao nível infranacional» (ibid., 92), ou seja, quanto maior a sua recorrência, maior será a probabilidade de coligações à esquerda. No entanto, esta experiência tem sido reduzida ao terreno autárquico de Lisboa, não tendo existido uma extrapolação para o nacional, «ao contrário do que aconteceu em muitos outros países» (ibid., 15). Além disso, existe um receio, justificado ou não, por parte das esquerdas radicais de diluírem a sua identidade partidária ao realizarem uma aliança com os socialistas e, consequentemente, contribuírem para a futura erosão da sua base político-eleitoral (Jalali & Lisi apud Freire 2017, 93). Por último, mas não menos importante, não tem existido uma disponibilidade efetiva para a cooperação entre partidos. Em oposição ao período da Guerra Fria, a falta de compromisso deve-se, agora, em «maior parte aos partidos de esquerda radical do que dos socialistas» (Freire 2017, 15). Este ponto poderá estar relacionado «com a importância do papel dos líderes, em particular, e dos dirigentes partidários, em geral, para a busca de tais entendimentos» (Freire 2017, 91).
De acordo com Lisi (2016, 544), o objetivo deste movimento para a esquerda era, sobretudo, o possível enfraquecimento da ala direita e, de acordo com Freire (2017, 22), a eliminação do «risco de pasokização do PS» [80]. Neste sentido, a «distância entre o PS e os dois partidos de esquerda radical permaneceu relativamente estável, enquanto o fosso entre os dois partidos moderados se alargou substancialmente» (Lisi 2016, 547) [81], dificultando profundamente as usuais alianças entre os partidos moderados (PSD e PS), uma vez que «estão mais distantes do que nunca […] em termos ideológicos na dimensão esquerda-direita» (Freire 2017, 203). Esta polarização crescente ocorreu «ao nível da elite mas não ao nível das massas» (Freire, Lisdi & Tsatsanis 2020, 76) [82]. Ao nível do eleitorado, por seu lado, já existia uma desafeição política anteriormente ao início da crise (ibid., 71), e esta foi o catalizador que levou a uma insatisfação geral com as instituições políticas nacionais (Freire, Lisi e Tsatsanis 2020, 66). Por conseguinte, este descontentamento e desconfiança ao nível nacional (que, além da crise, também se mostrava desvantajoso face ao caso dos Vistos Gold e ao caso Sócrates, antes indicados) amplificou-se para o nível supranacional. De acordo com o Eurobarómetro, existiu um declínio de confiança significativo no Parlamento Europeu de 70%, em 2010, para 33%, em 2014 (Lisi 2016; Freire, Lisi & Tsatsanis 2020). Assim, se, por um lado, «os principais partidos da oposição têm melhores hipóteses durante a crise financeira de substituir os incumbentes se houver novas eleições» (Giorgi, Moury & Ruivo 2015, 58) [83], por outro, todos estes fatores de desconfiança indicam uma rejeição das formas convencionais de representatividade democrática e, consequentemente, preparam o contexto político português para a entrada de partidos exteriores ao arco governamental, que podem explorar o descontentamento dos cidadãos e a falta de representação dos mais afetados pela crise (Lisi 2016; Freire, Lisi & Tsatsanis 2020).
«querer dessacralizar a vaca sagrada […] do arco governamental (ou seja, que a governação só pode acontecer com o PS e os partidos situados à sua direita) e, por outro, mostrou abertura e vontade para entendimentos com os partidos à sua esquerda» (Freire 2017, 136).
Esta abertura já tinha sido exibida ao nível autárquico, aquando do acordo com José Sá Fernandes [88], vereador independente do BE, no momento do seu mandato como Presidente da Câmara Municipal de Lisboa (2007) e da sua coligação aos Cidadãos por Lisboa (Freire 2017, 136). Embora o acordo com o BE tenha sido desfeito, Costa demonstrava vontade de se aliar aos partidos à sua esquerda e, sobretudo, de querer extrapolar esse entendimento para um nível nacional. António Costa apresentava uma «vontade de divergir da direita no poder, das políticas neoliberais apresentadas como “o único jogo na cidade”» (ibid.) porque sabia que é «quando os socialistas se tornam indistinguíveis da direita que se tornam irrelevantes e abrem espaço para que a oposição ao euroliberalismo seja monopolizada pela direita radical e/ou direita nacionalista e eurocética (Hungria, Polónia, França)» (ibid., 175). Além disso, Costa sabia que ou se tornava Primeiro-Ministro através deste entendimento da esquerda plural, ou iria apoiar parlamentarmente, ou até através de coligação formal, um governo de centro-direita, o que, como já mencionado, não se exibiam como alternativas viáveis devido ao risco de “pasokização”. Por conseguinte, assumiu uma «inteligente estratégia eleitoral para encurralar a esquerda radical obrigando-a ou a assumir o poder ou a correr o sério risco de, por recusar o “pedido do noivado” do PS, ser trucidada nas urnas pelos (seus) eleitores de esquerda» (ibid., 136). Sabia, pois, que:«[o] tão abusado conceito de “arco da governação” não pode servir para justificar a exclusão sistemática de certos partidos da responsabilidade de governar. É na sua pluralidade que o Parlamento representa o país e não há qualquer razão para o PS ignorar as aspirações dos eleitores representados pelos partidos à sua esquerda» (Costa apud Freire 2017, 130).
Do ponto de vista da ala à esquerda do PS, existiam diversas razões para a formação de um entendimento de esquerdas. Em termos conjunturais, a esquerda radical, tal como o PS, almejava suprimir as políticas neoliberais do PSD e do CDS. Por outro lado, em termos estruturais, tornava-se necessário, tal como a anterior citação de Costa atesta, uma maior clareza nas alternativas políticas de governo, bem como uma maior inclusão e inovação, sobretudo da ala esquerda, para «se poderem contestar as fortes pressões neoliberais vindas da Europa» (ibid., 139). Em termos particulares, embora a CDU seja eurocética, não apenas no que respeita à rejeição da integração de Portugal na UE, mas também à integração na União Económica Monetária (UEM), Costa reiterou diversas vezes, para amenizar possíveis preocupações neste campo, que o PS não era iria ser como a coligação de esquerda radical Syriza e que, portanto, apresentava-se «como fortemente comprometido com o projeto e os objetivos europeus» [89] (Giorgi e Pereira 2016, 458). Além disso, apesar de as cedências para um entendimento terem sido múltiplas, estas foram«porventura maiores da parte dos pequenos (BE e/ou PCP) do que dos grandes (PS) por uma razão simples: a força dos números, que é um elemento crucial numa qualquer democracia, implica que os grandes tenham um papel mais importante do que os pequenos num acordo parlamentar ou coligação» (Freire 2009, 36).
Ainda assim, apesar de o PS preferir uma coligação governamental, os partidos de esquerda radical rejeitaram esta oferta e os acordos bilaterais basearam-se num «"mínimo denominador comum", uma lista de prioridades partilhadas, que assim evitou adotar uma posição clara em assuntos mais controversos, nomeadamente questões europeias e o Tratado de Lisboa» (Lisi 2016, 554) [90]. Esta alternativa oferecia a vantagem de dissipar o receio tido por parte da ala esquerda de diluir a sua identidade partidária ao realizar uma aliança com os socialistas, como anteriormente indicado, em virtude de poderem «manter um pé dentro e um pé fora do governo» (ibid., p.556) [91], de que beneficiou, especialmente, o PCP e a sua ligação à CGTP-IN.«[E]sta é precisamente a razão pela qual o parlamentarismo contratual emerge como uma solução interessante para partidos de fora [do arco de governação]: "acesso ao poder, mas criticando e fazendo protestos contra medidas do governo de que não gostam para manter as credenciais radicais e a mobilização partidária"» (Dunphy & Bale apud Fernandes, Magalhães & Pereira 2018, 515) [92].
Ademais, o entendimento de esquerdas baseou-se num status quo ante bellum às medidas de austeridade, ou seja, todo o programa se baseou numa «reversão de algumas das mais importantes medidas implementadas na sequência do acordo de entendimento» (Lisi 2016, 554) [93], sobretudo no que concerne o Estado Social e os impostos [94]. De outro ponto de vista, o acordo foi ainda facilitado por uma «substituição geracional» (ibid.) [95], «uma nova geração de esquerda […] que não vivenciou esses dias e que, não estando marcada por essa espécie de trauma genético, poderá ter contribuído para criar as condições psicológicas para alcançar tal acordo» (Moreira apud Freire 2017, 206), isto é, uma geração que «pertence à geração pós-25 de abril» [96] (Lisi 2016, 554) [97].Além do contexto nacional, como por exemplo o campo jurídico que impedia a dissolução do Parlamento pelo Presidente da República nos seis meses anteriores às Eleições Presidenciais (cf. Art. 172.º, n.º 1 da CRP), como previamente mencionado, o próprio contexto internacional foi benéfico para a concretização deste fenómeno histórico. Por um lado, este ocorreu aquando da crise dos refugiados, que suplicava uma Europa mais social, face à «Europa cada vez menos social e cada vez menos democrática» desta altura (Freire 2017, 153). Por outro, foi o ano em que se deu a ascensão da coligação da esquerda radical Syriza, nas eleições legislativas gregas de janeiro de 2015, e o sucesso do Podemos, nas eleições autárquicas espanholas de maio de 2015, demonstrando o «gradual desgaste dos partidos moderados» (Lisi & Fernandes 2015, 291) e, por conseguinte, «influenciando […] o posicionamento e as políticas propostas pelos portugueses» (ibid.).
Por fim, com a formação da Geringonça ocorria «a queda do Muro de Berlim em Portugal 26 anos depois» (Freire 2017, 202). Embora Portugal tenha demorado a alcançar um entendimento entre a esquerda plural, conseguiu fazê-lo e, consequentemente, a curto prazo, resolveu o desequilíbrio estrutural da política portuguesa que prejudicava a qualidade da democracia, na medida em que excluía «sistematicamente do acesso ao governo 15% a 20% dos eleitores» (ibid., 152), tornando-se, portanto, mais inclusiva.
Relativamente a consequências que poderão vir a manifestar-se a longo prazo, é necessário aguardar pelos próximos anos para que possa ser estabelecido um padrão. «Portugal chegou tarde, especialmente quando consideramos o contexto do sul da Europa» (Lisi 2016, 543) [98], mas, ainda assim, podemos afirmar que existiu «um contágio limitado da solução portuguesa para fora» (Freire 2017, 219), por exemplo nas duas eleições legislativas espanholas inconclusivas, em dezembro de 2015 e julho de 2016, visto que o PSOE apresentou uma incapacidade de entendimento com o Podemos e com os independentistas catalães, ou seja, «de repente, Portugal tornou-se um modelo para o sucesso económico, a estabilidade política, ou até a resiliência de partidos sociais democráticos ou política progressista» (Fernandes, Magalhães & Pereira 2018, 519) [99].
4. conclusão
A análise realizada dos resultados eleitorais permite a apreensão de que a população portuguesa se encontrava descontente com o sistema partidário existente. Este descontentamento não só é exibido através do crescimento contínuo da abstenção, nas eleições legislativas, desde 2009, como dos resultados eleitorais das eleições legislativas de 2015 que não concediam maiorias a nenhum dos partidos. Neste sentido, compreendemos a existência de uma responsabilização/punição à coligação PSD e CDS que governou no mandato de 2011-2015, mas, em simultâneo, uma desconfiança em relação ao PS, devido à responsabilização da situação deficitária económica atribuída pelo eleitorado ao seu anterior governo e à sua correlação com o Caso Sócrates. Por conseguinte, os partidos mainstream de centro-direita, PSD, e centro-esquerda, PS, foram postos em causa.
Com a descrição de todo o processo de formação de governo, expusemos as diversas hipóteses e contextos aquando do período de decisão eleitoral, e todas as condições técnicas e legais que permitiram cada um desses cenários, de modo a existir uma compreensão mais abrangente do sistema eleitoral português. O caminho percorrido pelo conceito de “arco governamental” permitiu a chegada às condições do seu rompimento e da consequente formação da Geringonça. Deste modo, inferiu-se que este governo não passou de um casamento de conveniência (Lisi 2016) para impedir que a direita retornasse ao poder e possibilitar a implementação de uma agenda anti-austeridade. Neste sentido, não existiu um único fator, mas antes um conjunto de fatores e condições estruturais, situacionais e contextuais, algumas inéditas, que permitiram a significativa alteração dos 40 anos da história da democracia do sistema eleitoral português, que em circunstâncias normais não teria decorrido (Giorgi & Cancela 2019).
Para citar este ensaio:
Borges Carvalho, Ana. 2021. “A Reconfiguração da Democracia Portuguesa pela Geringonça.” Palimpsesto. www.palimpsesto.online/ensaios/a-reconfiguracao-da-democracia-portuguesa-pela-geringonca.
referências ↓
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