a reconfiguração da democracia portuguesa pela geringonça

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Sobre a Pessoa Autora

Do interior para a capital para obter a licenciatura em Ciências da Comunicação, com vertente em Comunicação Estratégica, na NOVA FCSH. Atual mestranda em Ciência Política e Relações Internacionais com especialização em Estudos Europeus, nesta mesma instituição. Tamanha reviravolta nos estudos talvez tenha que ver com o insaciável gosto por atividades comunitárias que desde cedo despertou e criou a ambição (quiçá devaneio) de poder, tal como diria Baden-Powell, «deixar o mundo um pouco melhor do que o encontraste».


Resumo

O presente artigo pretende analisar as eleições legislativas portuguesas realizadas a 4 de outubro de 2015 e todo o processo atípico consequente para a formação de governo. Partindo da exploração dos resultados eleitorais e de pressupostos que os clarificam, segue-se a análise do processo de formação de governo mais alongado da história da democracia portuguesa, através de uma abordagem tecno-descritiva, em que os factos decorridos são relatados, correlacionados com as condições técnicas e legais que os consentiram, e confrontados com teses teóricas. Posteriormente, uma vez que a formação da Geringonça foi um marco na história da democracia portuguesa, este estudo percorre as razões de raiz histórica que levaram à criação do “arco da governação” e que, por conseguinte, impediram o entendimento da esquerda plural, bem como as condições que, noutro momento, abriram caminho para o rompimento dessa dinâmica que perseverava há 40 anos que teve como resultado o entendimento entre as esquerdas após as eleições legislativas de 2015. Assim, pretende-se responder à questão “como foi possível a formação do contratualismo parlamentar inédito da Geringonça na democracia portuguesa?”. É de realçar, porém, que não existe uma razão única para este fenómeno, mas antes um conjunto de condições e fatores situacionais, contextuais e estruturais que permitiram todo o desenrolar da formação da Geringonça.

 
 

1. resultados eleitorais e justificações plausíveis

No dia 4 de outubro de 2015 realizavam-se eleições legislativas em Portugal, que se caracterizaram pela menor participação na democracia portuguesa até então, ou, por outras palavras, pela maior abstenção, nas eleições legislativas, de sempre, com uma percentagem de 44,16%, confirmando a tendência existente desde 2009 de o “partido da abstenção” ser o mais votado [1] (Gráfico 1).

[1]
Hoje sabemos que a abstenção atingiu um novo recorde nas eleições legislativas de 2019, tendo sido superior a 50% (CNE) e, por conseguinte, indo ao encontro da tendência existente desde 2009.

 
Gráfico 1 – Evolução percentual da votação nas eleições legislativas portuguesas, desde 1975 a 2015 (dados: SGMAI).

Gráfico 1 – Evolução percentual da votação nas eleições legislativas portuguesas, desde 1975 a 2015 (dados: SGMAI).

 
Estas eleições concederam uma vitória com maioria relativa de 36,86% dos votos, 107 mandatos (102 da coligação Pàf mais 5 do PSD nas Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores, onde não concorreu em coligação), à coligação “Portugal à Frente” (Pàf), constituída pelo Partido Social Democrata (PSD) e pelo Partido do Centro Democrático Social (CDS). Atente-se para o facto de o PSD ter governado em coligação pós-eleitoral com o CDS no anterior mandato (2011-2015) [2], aquando da crise da dívida soberana e, consequentemente, dos compromissos internacionais para com a União Europeia (UE) e, especificamente, com a Troika [3]. Assim, embora tenha vencido as eleições, a coligação perdeu mais de 800 000 votos, quando comparada às eleições legislativas precedentes, sendo que as perdas mais significativas ocorreram nas áreas metropolitanas do Porto e de Lisboa (CNE). Estas perdas eleitorais, além da insatisfação para com as medidas de austeridade são, ainda, explicadas pelo escândalo dos Vistos Gold (2014), que levou à demissão do Ministro do Interior, Miguel Macedo [4]. Seguiu-se o Partido Socialista (PS) com 32,32% dos votos, 86 mandatos, sendo provavelmente «os maiores perdedores da noite» (Fernandes 2016, 895) [5]. Embora tenha obtido um pequeno crescimento percentual, após quatro anos de severas medidas de austeridade impostas pela direita [6], o PS não conseguiu alcançar a vitória. Este desfecho resulta de dois problemas: por um lado, o «peso do legado do governo socialista anterior e a sua associação com as políticas que conduziram à bancarrota e ao programa de assistência financeira» (Lisi & Fernandes 2015, 302) [7]; por outro, diretamente associado ao anterior, o caso Sócrates, Primeiro-Ministro nos mandatos de 2005-2009 e 2009-2011, acusado de corrupção e de fraude fiscal. O facto de ter sido mantido em custódia levou a que os eleitores visualizassem «sombras que pairaram sobre a liderança do partido» (ibid., 302, 333), colocando o novo líder partidário do PS, António Costa, «numa situação muito delicada, dado que era não só um ex-ministro no primeiro governo de Sócrates, mas também um amigo do ex-primeiro ministro» (Giorgi & Pereira 2016, 454) [8]. O Bloco de Esquerda (BE) foi «indubitavelmente o maior vencedor a sair da eleição legislativa» (Fernandes 2016, 895) [9], duplicando os seus votos – de cerca 5,2% para 10,2% – e, consequentemente, passando de 8 mandatos, em 2011, para 19 mandatos, em 2015. Este resultado eleitoral veio reverter o movimento descendente que o BE tinha vindo a exibir em eleições anteriores e permitiu-lhe, ainda, ultrapassar os resultados do Partido Comunista Português (PCP). O resultado significativamente positivo pode explicar-se pela nova liderança de Catarina Martins que «renovou o partido ao apresentar uma imagem mais moderada e apelativa aos eleitores» (Fernandes 2016, 895) [10]. Além disso, pode ainda ser justificado pelo papel de Marisa Matias e Mariana Mortágua, sendo a última conhecida por ter «ascendido ao estrelato pelo seu trabalho na comissão de inquérito parlamentar ao sistema financeiro, tendo questionado algumas das pessoas mais poderosas do país» (ibid.) [11]. O resultado da Coligação Democrática Unitária (CDU), composta pelo PCP e pelo Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV), foi «agridoce» (Lisi & Fernandes 2015, 303; Fernandes 2016, 895). Ainda que tenha alcançado uma ligeira melhoria no resultado eleitoral, de 7,9% para 8,25% e, à vista disso, somado um assento, de 16 para 17, esperava-se que exibisse um resultado mais consistente face ao «aparente apoio que o partido teve nas ruas, muito ajudado pela capacidade de Jerónimo de Sousa de interagir com os eleitores» (Fernandes 2016, 895) [12]. Sem embargo, conseguiu alcançar dois resultados estratégicos: «o primeiro foi evitar a maioria absoluta da coligação da direita; o segundo relaciona-se com a capacidade de evitar um forte voto estratégico a favor do PS» (Lisi & Fernandes 2015, 303).

[2]
Para mais informações acerca da constituição e caraterização dos Governos Constitucionais consultar este link.

[3]
A Troika é composta pelas três instituições responsáveis pelos planos de resgate financeiro dos Estados-Membros da UE que recorrem a programas de ajustamento – Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional.

[4]
Ver "Miguel Macedo demite-se", Expresso (link).

[5]
«the major losers of the evening»

[6]
Para mais informações sobre o período de austeridade durante a coligação pós-eleitoral de direita entre PSD e CDS, no mandato de 2011-2015, cf. Fernandes, Magalhães & Pereira 2018.

[7]
A análise informal de Magalhães (2016) prova justamente que um dos problemas do PS foi o facto de um em cada dois eleitores atribuir responsabilidade ao anterior Governo pela situação económica desfavorável em que o país se encontrava. Por conseguinte, o autor compreendeu que existiam mais pessoas que associavam a competência económica ao Governo da Pàf do que ao Governo do PS (cf. Magalhães 2016).

[8]
«in a very delicate situation, since he was not only a former minister in the first Sócrates cabinet but also a friend of the ex-PM»

[9]
«undoubtedly the greatest winner coming out of the general election»

[10]
«renewed the party by presenting a more moderate and appealing image to voters»

[11]
«rose to stardom thanks to her work in the legislative committee on the financial system, by questioning some of the most powerful people in the country»

[12]
«apparent support the party enjoyed on the streets, much helped by Jerónimo de Sousa’s capacity to engage with voters»

 
Figura 2 – Percentagem de votos, número de deputados e distribuição geográfica dos resultados das eleições legislativas de 2015.

Figura 2 Percentagem de votos, número de deputados e distribuição geográfica dos resultados das eleições legislativas de 2015.

 
As eleições legislativas de 2015 foram marcadas pela presença de pequenos novos partidos: o LIVRE – Tempo de Avançar (L-TDA) [13], partido que «procurou representar o "centro da esquerda"» (Lisi 2016, 551) [14] na «área dos verdes» (Freire 2017, 56), criado em 2014, pouco antes das eleições europeias e que se apresentou significativamente favorável à existência de um entendimento entre os partidos de esquerda; o Partido Democrático Republicano (PDR), partido centrista e populista, criado em 2015 por Marinho Pinto, e apoiado pelo pequeno Partido da Terra (MPT), concentrado na figura do seu líder face à sua popularidade televisiva nacional; e o partido ambientalista Pessoas-Animais-Natureza (PAN) – criado em 2009, conseguiu resultados favoráveis que, em 2011, lhe permitiram a obtenção de uma subvenção estatal [15], o que lhe possibilitou a mobilização do seu próprio eleitorado de forma mais significativa através da realização de uma campanha mais sólida (Giorgi & Pereira 2016, 458). Embora o LIVRE e o PDR possuíssem «líderes conhecidos e com ampla cobertura mediática na campanha, falharam na tentativa de eleger um deputado para a Assembleia da República» (Fernandes 2016, 895) [16], sendo que «um dos resultados mais inesperados desta eleição foi que o L-TDA e o PDR tiveram menos de metade dos votos estimados nas sondagens» (Giogi & Pereira 201, 461) [17]. Contrariamente, o partido PAN, que era considerado o menos popular e com menor chance de eleger (ibid., 462), conseguiu alterar o cenário parlamentar, cuja composição era semelhante desde a entrada do BE em 1999 [18], com a obtenção de um assento parlamentar, que foi ocupado pelo seu líder André Silva, com 1,39% dos votos [19]. Conseguimos apreender o crescimento da corrente antissistema em virtude do aumento contínuo da abstenção (Gráfico 1) e da maior «aposta nos partidos de menor dimensão, em detrimento dos partidos tradicionais» (Alcobia & Castanheira 2020) cuja soma de votos «foi a menor desde 1985» (Giorgi e Pereira 2016, 452) [20], fenómeno que se explica pelo «crescimento eleitoral exponencial do BE e um aumento da votação extra-parlamentar» (Fernandes, Magalhães & Pereira 2018, 463) [21], tendo sido este crescimento que «permitiu a um novo partido político (PAN) entrar no parlamento» (ibid.) [22]. Justamente por isso, foram, também, as eleições «mais competitivas que se registaram desde 1985» (Lisi & Fernandes 2015, 305). Assim, uma das novidades das eleições legislativas de 2015 foi que «se, por um lado, os eleitores puniram o governo, por outro recusaram-se em premiar diretamente o principal partido de oposição» (ibid., 306). Não obstante, «os resultados da eleição forneceram provas adicionais da resiliência do sistema partidário português» (Fernandes, Magalhães & Pereira 2018, 463) [23], em virtude do facto de que «os principais partidos não só sobreviveram à grave crise económica e ao resgate, mas também às duras medidas de austeridade implementadas a partir daí» (ibid.) [24], ou seja, «embora tenham tido resultados dececionantes nas sondagens, nenhum dos partidos que assinaram o pedido de resgate sofreu perdas desmesuradas no apoio eleitoral face a 2011, incluindo os incumbentes que tinham implementado as medidas de austeridade nos quatro anos precedentes» (ibid.) [25].

[13]
Para mais informações acerca deste partido, ver: Freire, André. 2017. "Partido Livre: Potencialidades e Riscos". In Para Lá da «Geringonça». O Governo de Esquerdas em Portugal e na Europa, de André Freire, 56-59. Lisboa: Contraponto.

[14]
«aimed to represent the “centre of the left”»

[15]
Conforme a Lei nº 19/2003, de 20 de junho, Art.º 5, nº 7 (link), um partido pode requerer uma subvenção estatal desde que obtenha um número de votos superior a 50.000, que foi justamente o caso do PAN nas eleições legislativas de 2011 com 57.849 votos (SGMAI).

[16]
«well-known leaders and with extensive media coverage in the campaign, failed in their bid to elect an MP to the Portuguese legislature»

[17]
«one of the most unexpected outcomes of this election was that L-TDA and PDR secured less than half of the vote shares estimated by the polls»

No entanto, hoje sabemos que isso se alterou nas eleições legislativas de 2019 com a eleição de uma deputada apoiada pelo LIVRE para o Parlamento, Joacine Katar Moreira, alargando, novamente, a constituição da AR. Para mais informações acerca da campanha, cf. Alcobia & Castanheira 2020.

[18]
Constituído pelas mesmas seis forças parlamentares: PCP, BE, PEV, PS, PSD e CDS.

[19]
Hoje sabemos que este partido tem vindo a aumentar a sua força parlamentar, tendo conseguido quadruplicar os seus mandatos nas eleições legislativas de 2019 (CNE).

[20]
«was the lowest since 1985»

[21]
«exponential electoral growth of the BE and an increase in extra-parliamentary party voting»

[22]
«allowed a new political party (PAN) to enter parliament»

[23]
«the election results offer additional evidence of the Portuguese party system’s resilience»

[24]
«main parties not only survived the severe economic crisis and the bailout but also the hard austerity measures implemented thereafter»

[25]
«although they had disappointing results at the polls, none of the parties that signed the bailout agreement suffered overwhelming losses in electoral support vis-à-vis 2011, including the incumbents that had implemented austerity measures in the preceding four years»

 

2. do período de governação mais curto à formação de governo mais prolongada da história da democracia portuguesa: o processo

A vitória da coligação Pàf encontrava-se baseada numa maioria relativa e, por isso, «numa qualquer democracia digna desse nome, se a força política vencedora o for apenas com maioria relativa terá de conseguir aliados para governar» (Freire 2017, 163). Com a exceção das eleições legislativas de 1985, devido ao fenómeno do Partido Renovador Democrático (PRD), a direita, ao longo da história da democracia portuguesa, sempre venceu as eleições, a solo ou em coligação, com uma sólida maioria absoluta – 1979, 1980, 1987, 1991, 2002 e 2011.

Ainda assim, «a cooperação entre o PS e o PSD tem desempenhado um papel central na dinâmica do sistema partidário» (Jalali 2003, 550) e, portanto, «a princípio, a situação parecia destinada a seguir a política do costume» (Fernandes 2016, 896) [26], ou seja, «o governo de direita minoritário formaria governo com o apoio tácito dos socialistas [PS]» (ibid.) [27]. Esta solução é possível na democracia portuguesa graças ao “parlamentarismo negativo”; por outras palavras, não é necessário um apoio maioritário na Assembleia da República para se ser empossado (o designado “voto de investidura”, que, por exemplo, acontece em Espanha ou, a nível supranacional, na investidura da Comissão Europeia pelo Parlamento Europeu). Ainda assim, conforme o Art. 195.º, al. d) da Constituição da República Portuguesa (CRP), o partido mais votado, para permanecer no governo, necessita, entre outros, de evitar a rejeição do seu programa por uma maioria absoluta no Parlamento. No entanto, é importante notar que esta possibilidade foi introduzida pela CRP de 1976 com «um propósito muito definido em mente: facilitar a inauguração de governos socialistas minoritários e, através disso, abordar o desequilíbrio no sistema partidário que tornava coligações vencedoras com um resultado mínimo possíveis à direita, mas impossíveis à esquerda» (Teles apud Fernandes, Magalhães & Pereira 2018, 506) [28]. Dessarte, ainda que a democracia portuguesa tenha sido constituída com uma «marca de esquerda» (Giorgi & Cancela 2019, 4) [29], «Portugal tem um sistema partidário enviesado para a direita» (Freire 2017, 33), o que foi significativamente auxiliado pela introdução desta possibilidade, que acabou por ajudar mais a direita, visto que «a esquerda portuguesa se manifesta principalmente na falta de solidariedade e disponibilidade para cooperação entre si» (Heilig apud Lisi 2016, 542) [30]. Além do apoio parlamentar, uma segunda solução poderia ter sido a formação de uma segunda coligação pós-eleitoral, ao estilo do Bloco Central (1983-1985), entre o PSD e o PS, porém, desta vez, o CDS não seria deixado fora da aliança por efeito da coligação pré-eleitoral Pàf. Esta solução só seria possível porque «na sua essência, o PS e o PSD – à semelhança dos seus correspondentes espanhóis – são partis de electeurs, partidos catch-all, com a sua característica flexibilidade e indefinição ideológicas» (Gunther et al. apud Jalali 2003, 551). Contudo, esta saída apenas aprofundaria o não-entendimento entre o PS e os partidos à sua esquerda, pois, segundo Soares, «o bloqueamento hegemónico em que o ‘bloco central’ quis transformar a vida política portuguesa não alimenta qualquer esperança quanto a coligações» (apud Freire 2009, 36). Ademais, no contexto em que se encontrava, o PS sofria já consequências negativas, tanto ao nível do eleitorado como em relação aos partidos à sua esquerda, por ter reiterado o pacote de austeridade da Troika com o PSD e o CDS (o BE, o PEV e o PCP recusaram), e por ter «votado a favor ou ter-se abstido de votar nos mais importantes pacotes nos primeiros 15 meses da atual legislatura» (Giorgi, Moury & Ruivo 2015, 55) [31], bem como apenas ter «mudado de estratégia e votado contra o orçamento de 2013 em novembro de 2012» (ibid.) [32] (ibid.). Por isso mesmo, nenhuma das anteriores opções pareciam viáveis na manutenção do futuro do PS. Deste modo, restava uma única opção, segundo a qual «poderá ser o segundo partido mais votado a comandar o governo, se for capaz de liderar uma alternativa no Parlamento, e o vencedor com maioria relativa pode passar à oposição (…) – solução não só plenamente democrática como muitíssimo comum» (Freire 2017, 163), contrariamente ao entendido pela maioria dos demais [33], que alegavam «"ilegitimidade democrática” em caso de solução de governo que juntasse o PS com os partidos à sua esquerda» (Freire 2017, 163). Segundo Freire (2017), esta seria uma solução concordante com a teoria e a prática democrática, tanto na Europa (pensemos no caso da Espanha que, coincidentemente, nas eleições legislativas de 2015, apesar de os conservadores do PP terem obtido a maioria relativa em diversas comunidades autónomas de Espanha, foram os socialistas do PSOE que governaram nas mesmas, ou em solução minoritária com apoio parlamentar – que não o do PP –, ou através de coligação) como no resto do mundo (tomemos como exemplo o sistema semipresidencialista de Timor-Leste, estruturado à imagem do português, onde a esquerda pós-marxista Fretilin ganhou as eleições de 2007 com maioria relativa, mas quem governou foi o CNRT, liderado por Xanana Gusmão, com o apoio parlamentar de outros partidos). Por conseguinte, é também congruente com o constitucionalismo português.

[26]
«at first, the situation seemed poised to follow politics as usual»

[27]
«the minority right-wing government would take office with the tacit support of the Socialists»

[28]
«a very definite purpose in mind: facilitating the inauguration of Socialist minority governments and, by doing so, addressing the imbalance in the party system that made minimum winning coalitions possible in the Right but impossible in the Left»

[29]
«leftist imprint»

[30]
«Portuguese left is primarily manifested in the lack of solidarity and willingness to cooperate with one another»

[31]
«voted in favour or abstained from voting on the most important packages during the first 15 months of the current legislature»

[32]
«shifting strategy and voting against the 2013 budget in November 2012»

[33]
«Vários jornalistas/comentadores tecnicamente impreparados e/ou ideologicamente enviesados, junto com a direita manipulativa, falam já em golpe de Estado, PREC ou "fraude pós-eleitoral", caso não seja a Pàf a liderar o governo» (Freire 2017, 163).

 
Figura 3 – Resultados das eleições legislativas de 2015 em Espanha.

Figura 3 – Resultados das eleições legislativas de 2015 em Espanha.

 
 
Figura 4 – Resultados das eleições parlamentares de 2007 em Timor-Leste.

Figura 4 – Resultados das eleições parlamentares de 2007 em Timor-Leste.

 
O Sistema Eleitoral Português trata-se de um «sistema eleitoral de representação proporcional (RP) com circunscrições de um nível que utiliza a fórmula d’Hondt e que tem permanecido em vigência desde as primeiras eleições democráticas de 1975» (Jalali 2003, 547) [34]. Enquanto sistema semipresidencialista, a formação do governo baseia-se numa «relação triangular entre os três corpos políticos fundamentais do sistema político português – o Presidente, o executivo e a legislatura» (Leston-Bandeira & Fernandes apud Fernandes 2016, 896) [35], sendo que «o processo de formação de governo exige o envolvimento de todos, sem providenciar um poder desmesurado a nenhum» (ibid.) [36]. Neste seguimento, conforme o Art. 133.º, al. f) e Art. 187.º, n.º 1 da CRP, o Presidente da República atua como informateur com a capacidade de nomear o formateur (Primeiro-Ministro), tendo em conta os resultados eleitorais. Posteriormente, em concordância com o Art. 187.º, n.º 2 da CRP, o Primeiro-Ministro propõe a constituição da sua equipa de ministros ao Presidente da República que, por seu lado, os nomeará. Segue-se a apresentação do programa do Governo que deverá ser realizada no prazo máximo de dez dias, consoante o estabelecido pelo Art. 192.º, n.º 1 da CRP. A não aprovação do programa proposto pelo Governo levará à demissão do mesmo, conforme o Art. 195.º, al. d) da CRP. Por outro lado, os partidos de oposição podem, também, apresentar uma moção de censura, de acordo com o estipulado pelo Art. 194.º da CRP. Assim, apesar de não ser necessário um voto de investidura, em consequência do parlamentarismo negativo, tal como elucidado previamente, «todos os novos governos devem sobreviver a um voto de censura, e devem, portanto, dispor de uma maioria legislativa mesmo que não seja necessário demonstrar explicitamente através de um voto de confiança» (Golder et al. apud Lisi & Fernandes 2015, 307) [37].

Tendo em conta toda a conjuntura tecno-legal, não só esta solução era possível no campo jurídico como na prática, dado que a esquerda plural (PS, BE, CDU e PAN) reuniu uma maioria absoluta com 52,15% dos votos. A obtenção de uma maioria absoluta por parte da esquerda plural em simultâneo com uma vitória da direita (em coligação ou a solo) só teve lugar em 1985; porém, nessa altura, isso não representava qualquer perigo iminente para a direita, uma vez que, como referido antecipadamente, as esquerdas ao longo da história portuguesa nunca foram capazes de formar entendimentos. De facto, tem existido uma

«exclusão sistemática do Partido Comunista do governo a partir de 1975, em grande medida resultado do papel desempenhado pelo PCP durante o período revolucionário de transição democrática de 1974-1975 e do seu apego à ortodoxia marxista-leninista. Esta exclusão continua a ser um aspecto fundamental ao nível sistémico e, desse modo, também ao nível dos alinhamentos eleitorais» (Jalali 2003, 550)

criando um cordon sanitaire (cordão sanitário) em torno dos partidos que se encontram à esquerda no espetro político (Fernandes 2016, 896) – temática que iremos desenvolver no ponto seguinte. Desta forma, a questão que se colocava em outubro de 2015 era se, após 40 anos, as esquerdas seriam capazes de esbater as suas divergências e alcançar um entendimento. Se por um lado se levantava este problema aos partidos de esquerda, por outro, anteriores sondagens, que previam a maioria relativa da coligação Pàf, exibiram a preferência do eleitorado por um governo de coligação de esquerda [38]. Nesse sentido, já em 2009, o eleitorado tinha exibido «inquestionável vontade de que se gerasse um entendimento entre os partidos de esquerda» (Freire 2017, 61) (Figura 5). Alguns dias após as eleições, percebeu-se a improbabilidade de um acordo entre Pàf e o PS no apoio de um governo minoritário constituído por Passos Coelho, o então líder do PSD, como Primeiro-Ministro. Quanto a este ponto existem duas opiniões distintas: por um lado, alguns observadores interpretam esta decisão como estando baseada no destino negativo do partido socialista grego PASOK, face à sua disposição para constituir uma coligação com o partido de centro-direita ND; outros, por outro lado, acreditam que António Costa queria torna-se Primeiro-Ministro e, por isso, não aceitaria um segundo acordo de apoio a um governo minoritário de Passos Coelho, perante a possibilidade de ele próprio se tornar Primeiro-Ministro, ainda que para isso necessitasse do apoio da esquerda radical (Giorgi e Pereira 2016, 464) [39]. Consideramos, no entanto, que terá sido uma junção de ambos, visto que diversas teorias acerca da formação de coligações reiteram que «os partidos políticos são "atores racionais" e procuram maximizar ou os cargos ou o programa político» (Strøm & Müller apud Lisi 2016, 541) [40], de modo a, por um lado «maximizar a sua parcela das vantagens de governar» (ibid.) [41] e, por outro, «maximizar a sua influência na criação de políticas» (ibid.) [42].

[34]
Tendo ocorrido apenas algumas alterações ao nível da dimensão da AR, estudos sugerem que tal «não teve impacto significativo sobre a desproporcionalidade do sistema eleitoral» (Jalali 2002 apud Jalali 2003, 547).

[35]
«triangular relationship between the three key political bodies of the Portuguese political system – the President, the executive, and the legislature»

[36]
«the process of government formation demands the involvement of all, without providing overwhelming power to any»

[37]
Por outras palavras, a moção de confiança não necessita de ser demonstrada de forma explícita, porém, em concordância com o Art. 195.º, al. d) da CRP, no caso de esta ocorrer e não ser aprovada dar-se-á a demissão do Governo.

[38]
Ver "Coligação 4.3 pontos à frente do PS", Público (link).

[39]
Sempre que nos referirmos a esquerda radical, referir-nos-emos ao BE e ao PCP, apesar de este último ser considerado por diversos autores como «comunista conservador» (Keith & Charambolous apud Freire 2017, 190), conforme a definição dada por Freire (2017, 31). Assim, "radical" surge aqui para descrever partidos que «rejeitam a estrutura socioeconómica subjacente ao capitalismo contemporâneo e os seus valores e práticas e defendem estruturas económicas e de poder alternativas envolvendo uma grande redistribuição de recursos das elites políticas existentes» («reject the underlying socio-economic structure of contemporary capitalism and its values and practices and advocate alternative economic and power structures involving a major redistribution of resources from existing political elites»; March & Mudde apud Giorgi & Cancela 2019, 3) e "esquerda", partidos que identificam «a inequidade económica como a base dos acordos políticos e sociais existentes e a adoção dos direitos económicos e sociais coletivos como a sua agenda principal» («economic inequity as the basis of existing political and social arrangements and their espousal of collective economic and social rights as their principal agenda»; ibid.).

[40]
«political parties are ‘rational actors’ and that they seek to maximise either office or policy»

[41]
«maximise their share of the spoils of government»

[42]
«maximise their influence over policy-making»

Figura 5 – Apelo público, independente de qualquer tipo de orientação, organização ou ação partidária, no qual é exibida a vontade de que existisse, logo em 2009, um entendimento entre os partidos de esquerda (Freire 2017, 60).

Figura 5 – Apelo público, independente de qualquer tipo de orientação, organização ou ação partidária, no qual é exibida a vontade de que existisse, logo em 2009, um entendimento entre os partidos de esquerda (Freire 2017, 60).

Embora fosse visível a existência de falta de apoio à coligação Pàf, a 22 de outubro [43], Cavaco Silva, Presidente da República na época, nomeou Passos Coelho como formateur. Contudo, este momento ficou marcado pelo discurso polémico do Presidente, pois parecia que proferia um «discurso presidencial encorajando os deputados socialistas a oporem-se ao seu líder e apoiar um segundo governo da Pàf» (Giorgi & Pereira 2016, 464) [44] e que «não aceitaria Costa como Primeiro-Ministro» (Fernandes 2016, 897) [45]. Ainda assim, o dia seguinte revelou-se como «o primeiro teste de coesão a uma potencial coligação de esquerda» (ibid.) [46], porém bem-sucedido, dado que o PS, o BE e o PCP «num gesto altamente simbólico» (ibid.) [47] viabilizaram, enquanto esquerda, a candidatura de Ferro Rodrigues para a Presidência da Assembleia da República. Como resultado, fez-se história, pois, pela primeira vez na democracia portuguesa, o Presidente do Parlamento não pertencia ao partido mais votado nas eleições legislativas [48]. A partir deste momento, a esquerda plural mostrou-se empenhada em alcançar um entendimento.

Contrariamente ao que o contexto nacional exibia, mas conforme a nomeação do Presidente da República, a 30 de outubro tomava posse o XX Governo Constitucional, com Passos Coelho como Primeiro-Ministro. Todavia, no dia 8 de novembro, era anunciado o alcance do entendimento entre a esquerda plural através de três acordos bilaterais estabelecidos entre os partidos – PS-PCP; PS-BE; PS-PEV – que foram assinados no dia posterior, com o apoio parlamentar do PAN. O entendimento encontrado pode ser descrito como “parlamentarismo contratual”, acordo político-organizacional frequentemente utilizado em países escandinavos e na Nova Zelândia (Bale e Bergman 2006), entre outros. Este define-se da seguinte forma: «governos de minoria formal (formados ou por um único partido, ou por uma coligação de partidos) têm relações com os seus partidos de "apoio" que são tão institucionalizadas que os fazem aproximar-se de governos de maioria» (ibid., 422) [49] (Figura 6). Ademais, esta relação baseia-se num «contrato explicitamente escrito com um ou mais partidos que ficam fora do governo» (ibid., 424) [50] que «compromete os parceiros para além de um acordo específico ou um compromisso temporário» [51] e «deve estar acessível ao público» (ibid.) [52]. No presente caso e como antecedentemente mencionado, «os Socialistas assinaram três acordos bilaterais com o BE, o PCP e o PEV, resultantes de três processos de negociação parcialmente separados» (Fernandes, Magalhães e Pereira 2018, 510) [53] e, por isso, uma «característica única do governo de Costa neste aspeto é que, ao contrário de situações análogas na Europa, não houve um acordo multilateral unificado» (ibid.) [54].

[43]
Ver cronologia "O Governo mais curto da História", TVI24 (link).

[44]
«presidential speech as encouraging Socialist MPs to oppose their leader and support a second PAF cabinet»

[45]
«would not accept Costa for the premiership»

[46]
«the first test of cohesion for a potential leftist coalition»

[47]
«in a highly symbolic gesture»

[48]
Ver "Ferro Rodrigues eleito presidente do Parlamento", Expresso (link).

[49]
«formally minority governments (formed by either a single party or a coalition of parties) have relationships with their ‘support’ parties that are so institutionalized that they come close to being majority governments»

[50]
«explicit written contract with one or more parties that remain outside the cabinet»

[51]
«commit the partners beyond a specific deal or a temporary commitment»

[52]
«must be available to the public»

[53]
«Socialists signed three bilateral agreements with BE, PCP, and PEV, resulting from three partially separate bargaining processes»

[54]
«unique feature of Costa’s government in this regard is that, unlike most of its European counterparts, there is not a unified multilateral agreement»

Figura 6 – Esquema de possibilidades de formação de governo, entre elas o parlamentarismo contratual, que foi o método seguido para a formação do XXI Governo de Portugal (Bale & Bergman 2006, 423).

Figura 6 – Esquema de possibilidades de formação de governo, entre elas o parlamentarismo contratual, que foi o método seguido para a formação do XXI Governo de Portugal (Bale & Bergman 2006, 423).

No dia 10 de novembro ocorreu a aprovação da moção de rejeição que, de acordo com o Art. 195.º, al. d) da CRP, fez o XX Governo Constitucional cair, tornando-se o governo mais curto da história portuguesa – onze dias, cinco horas e dez minutos [55]. O caminho estava aberto para a Geringonça [56]. De modo consequente, o processo de formação do governo foi reiniciado e cabia ao Presidente da República, Cavaco Silva, nomear um novo formateur. Por esse motivo, «o partido socialista, visto como o perdedor na noite das eleições, tornou-se a força crucial para a viabilidade de quaisquer potenciais novos governos» (Goulart & Veiga 2016, 198) [57]. No entanto, Cavaco Silva encontrava-se reticente quanto a esta nomeação, não só por ter sido líder do PSD, mas, sobretudo, devido ao papel revolucionário, antes indicado, tido pelo PCP aquando do Verão Quente e à sua afinidade com a ideologia marxista-leninista, o que, por conseguinte, resultou, implicitamente, na criação do arco da governação 40 anos antes. Após os acordos bilaterais e com a possível nomeação do novo governo, o “arco da governação”, isto é, «o grupo de partidos com experiência de governo ou disponíveis para assumir responsabilidades governamentais – que limitou a integração política dos partidos de esquerda radical em Portugal» (Lisi 2016, 541) [58], iria ser rompido, o que explicava a dubiedade do Presidente da República. Além disso, «desde a revisão constitucional de 1982, o executivo não é politicamente responsável vis-a-vis o presidente, é apenas responsável a Assembleia da República» (Freire 2017, 209); como efeito o Presidente da República apenas pode demitir o Governo se o regular funcionamento das instituições democráticas for posto em causa (Art. 195.º, n.º 2 da CRP). Este poder possui, porém, três exceções, sendo uma delas a impossibilidade de dissolução da Assembleia da República aquando dos últimos seis meses do seu mandato (cf. Art. 172.º, n.º 1 da CRP), caso em que se encontrava Cavaco Silva. Toda esta conjuntura apontava para o facto de que «nomear um governo socialista com base num acordo com os partidos da extrema esquerda representaria uma reformulação da estrutura do sistema partidário, levando a uma grande incerteza» (Fernandes 2016, 897) [59]. Sem embargo, a 24 de novembro Cavaco Silva nomeou António Costa como formateur, este tomou posse a 26 de novembro [60], e a aprovação do programa do XXI Governo Constitucional ocorreu a 3 de dezembro. Após o processo mais longo de formação de governo na história da democracia portuguesa, baseado num «parlamentarismo contratual à portuguesa» (Fernandes, Magalhães & Pereira 2018, 508) [61] no qual «foram precisos três para dançar o tango» (ibid.) [62], «a negociação e formação do novo governo induziu uma grande mudança no sistema partidário português» (Lisi 2016, 541) [63], em virtude do rompimento do “arco da governação” através da solução governamental apelidada Geringonça, sendo a primeira vez «desde o início da Terceira República instaurada em 1974, que o partido ou coligação vencedora das eleições não liderou o país» (Alcobia e Castanheira 2020).

A questão que se coloca é porquê agora? Quais as condições que tornaram viáveis o entendimento da esquerda plural e a consequente formação da Geringonça? O que se alterou ao longo dos 40 anos da história da democracia portuguesa que possibilitasse este entendimento de esquerda que até então tinha sido impossível? É do que tratará o próximo ponto.

[55]
Ver cronologia em "O Governo mais curto da História", TVI24 (link).

[56]
Conceito pejorativo apropriado por Paulo Portas (2015), líder do CDS, para descrever os acordos bilaterais que o PS tinha realizado com os partidos à sua esquerda e que se tornou um soundbite; primeiramente, tinha sido utilizado por Vasco Valente num artigo de 2014 apelidado “Geringonça”, no Público (link). Com o passar do tempo, ganhou uma conotação positiva, passando até a ser utilizado por António Costa (e.g. “Sim, sim, é geringonça, mas funciona!”) e sendo considerada a palavra do ano em 2016. Ver: “Há sempre uma primeira vez. New York Times usa a palavra ‘geringonça’”, no Observador (link).

[57]
«the socialist party, seen as the loser on election night, became the crucial force for the viability of any of the potential new governments»

[58]
«the group of parties with governmental experience or willing to take governmental responsibilities – that limited the political integration of radical-left parties in Portugal»

[59]
«nominating a Socialist government based on an agreement with the extreme-left parties would represent a reshaping of the structure of the party system leading to great uncertainty»

[60]
Ver “Tomada de Posse do XXI Governo Constitucional”, RTP Arquivos (link).

[61]
«contract parliamentarism à la Portuguese»

[62]
«it took three to tango»

[63]
«the negotiation and formation of the new government introduced a major change in the Portuguese party system»

 

3. a queda do “arco da governação”: circunstâncias, causas e consequências

A compreensão da queda do “arco da governação” exige o retorno à sua criação, antes referida de forma breve, para apreender a completude do conceito e, consequentemente, do fenómeno que aqui tem vindo a ser apresentado. Portugal esteve sob uma ditadura fascista, designada Estado-Novo (1926-1974) e, por conseguinte, «depois de 48 anos de um regime ditatorial com eleições de fachada, o golpe militar de 1974 viu uma viragem abrupta do país para a esquerda» (Goulart e Veiga 2016, 199) [64]. Esta viragem profunda levou a um dos períodos mais significativos da história portuguesa, o designado Verão Quente de 1975 [65] e a sua propensão para o aprofundar do Processo Revolucionário em Curso (PREC), baseado na ideologia marxista-leninista defendida pelo Partido Comunista Português. Como resultado, «isto levou alguns a pensar que Portugal se poderia tornar a Cuba da Europa» (Bruneau apud Goulart & Veiga 2016, 199) [66]. O PREC e a consequente viragem orientada para a extrema-esquerda do espetro político apenas viria a terminar com o 25 de novembro de 1975 [67], porém, «desde então, houve um deslocamento geral para a direita, seguindo uma tendência geral da Europa desde os anos de 1970» (Goulart & Veiga 2016, 199) [68], provocando o atual enviesamento para a direita que temos vindo a referir.

[64]
«after a 48-year long dictatorial regime with window-dressing elections, the military coup in 1974 saw an overshoot of the country to the left»

[65]
Ver “Derrotar os novos Lenines no Verão Quente de 1975”, Diário de Notícias (link).

[66]
«this led some to think Portugal could become the Cuba of Europe»

[67]
Ver “O Novembro Quente de 1975”, Visão (link).

[68]
«since then, there was a general shift to the right, following the overall trend in Europe since the 1970s»

 
Figura 7 – A 19 de junho de 1975 teve lugar na Alameda D. Afonso Henriques um comício do Partido Socialista (PS) que ficou conhecido como “Comício da Fonte Luminosa”. Na voz do seu secretário-geral, Mário Soares, foi exigida a demissão do então prim…

Figura 7 – A 19 de junho de 1975 teve lugar na Alameda D. Afonso Henriques um comício do Partido Socialista (PS) que ficou conhecido como “Comício da Fonte Luminosa”. Na voz do seu secretário-geral, Mário Soares, foi exigida a demissão do então primeiro-ministro Vasco Gonçalves. Este comício, quer pelo conteúdo dos discursos, quer ainda pela grande afluência que teve, é considerado como um dos momentos decisivos do Verão Quente na disputa de influência política na sociedade portuguesa.

 
Ademais, recordemos que nos encontrávamos em pleno período de Guerra Fria (1947- 1991) e «o PCP era um dos partidos comunistas mais ortodoxos da Europa Ocidental, sendo sempre dos mais alinhados com a URSS» (Gaspar & Rato apud Freire 2017, 75). Este alinhamento com a ideologia das democracias populares tornava o PCP mais suspeito, aumentando a desconfiança dos restantes partidos portugueses face ao significativo peso eleitoral que possuía nesse período, pois, «representou por vezes entre metade a dois terços do eleitorado socialista» (March & Freire apud Freire 2017, 75). Deste modo, o «o PCP constituiu um dos dois lados da clivagem entre partidos anti e a favor do sistema» (Jalali apud Fernandes, Magalhães & Pereira 2018, 506) [69] o que, associado ao «maximalismo das [suas] exigências […] para quaisquer acordos governativos» (Freire 2017, 13), fez com que, nesse período, «fosse sobretudo o PS, nomeadamente o então secretário-geral do partido, Mário Soares, a recusar alianças com a esquerda radical (leia-se PCP/APU/CDU)» (ibid.). O expoente máximo destas recusas de acordos governativos, que exibe de forma clara o cordon sanitaire (Fernandes 2016, 896) e o consequente “arco da governação”, foi a recusa do Presidente da República Mário Soares da formação de um «governo minoritário PS/PRD com apoio parlamentar do PCP, após a moção de censura apresentada pelo PRD que levou à queda do governo minoritário do PSD, em abril de 1987», preferindo convocar eleições legislativas antecipadas, o que resultou na primeira maioria absoluta do PSD.

Todavia, deu-se o término da Guerra Fria e a inexistência de um entendimento entre a esquerda plural permanecia em vigor, contrariamente aos restantes países europeus que, após a simbólica queda do Muro de Berlim (1989), começaram a manifestar entendimentos à esquerda. Freire (2017) indica seis razões para a impossibilidade de entendimento dos partidos de esquerda portugueses. Desde logo, «as caraterísticas institucionais do sistema político» (84), sendo que a arquitetura constitucional apenas exige a não-rejeição do programa do governo, favorecendo a formação de governos minoritários, como analisado previamente. Como resultado, acaba por não existir uma promoção da cooperação entre partidos. Ainda assim, o autor entende que este fator não poderá ser decisivo, dado que a direita tem sido capaz de alcançar diversos tipos de entendimentos com sucesso, como indicado anteriormente. Em segundo lugar, «mesmo com a resolução do conflito sobre a natureza do regime e a convergência dos comunistas com a noção de democracia representativa, a sua oposição à NATO, à integração europeira, e ao euro» (Cunha apud Fernandes, Magalhães e Pereira 2018, 506) [70] permanecia uma divergência inconciliável. Por outras palavras, «as distâncias ideológicas […] entre o PS e os partidos à sua esquerda têm sido sempre maiores do que as distâncias ideológicas entre o PS e o PSD» (March & Freire apud Freire 2017, 84), o que resulta das suas caraterísticas de partidos catch-all. Portanto, «não será tanto um excessivo radicalismo ideológico da esquerda radical portuguesa a obviar a tal entendimento, mas mais um excessivo centrismo dos socialistas» (Freire 2017, 89), o que foi acentuado através do «seu comportamento legislativo no Parlamento entre 2011 e 2014 […] [que] estava muito mais próximo do da direita do que da esquerda radical» (Freire, Lisi & Lima apud Freire 2017, 198). Este posicionamento fundamenta-se no facto de que «os partidos mainstream e tradicionalmente pró-Europa (primeiro o PSD e depois o PS) comportam-se menos como adversários do que em tempos normais, sendo o exato oposto verdade no caso do PCP e do PEV, dois partidos mais radicais e eurocéticos» (Georgi, Moury & Ruivo 2015, 71) [71]. Neste sentido, Lisi (2011) afirma que o PS evitou coligações com o PCP para não perder os seus eleitores centristas (apud Freire, 2017, 90). Contudo, Freire (2017) reitera que ambos os pontos do argumento do distanciamento ideológico devem ser relativizados, uma vez que não só o espetro político é representativo de uma escala abstrata, como partidos europeus de esquerda com distâncias ideológicas semelhantes conseguiram alcançar entendimentos entre si. A terceira razão prende-se com a divisão profunda do sindicalismo português «em duas grandes centrais, uma mais próxima da esquerda radical (a CGTP-IN [72]) e outra, a UGT [73], que é uma espécie de “bloco central” socialista/social-democrata mais próxima do centro político (PS e PSD)» (Freire 2017, 14). Neste sentido, «não houve pressão por parte dos sindicatos para uma maior cooperação entre esquerdas, conforme se verificou noutros países» (Bale & Dunphy apud Freire 2017, 197) o que explica, em parte, a inexistência de uma tendência para a formação de governos constituídos por uma esquerda plural. Num outro vetor, «tem sido apontado internacionalmente como propiciador/facilitador das coligações de esquerdas ao nível nacional […] a frequência de tais ligações coligações ao nível infranacional» (ibid., 92), ou seja, quanto maior a sua recorrência, maior será a probabilidade de coligações à esquerda. No entanto, esta experiência tem sido reduzida ao terreno autárquico de Lisboa, não tendo existido uma extrapolação para o nacional, «ao contrário do que aconteceu em muitos outros países» (ibid., 15). Além disso, existe um receio, justificado ou não, por parte das esquerdas radicais de diluírem a sua identidade partidária ao realizarem uma aliança com os socialistas e, consequentemente, contribuírem para a futura erosão da sua base político-eleitoral (Jalali & Lisi apud Freire 2017, 93). Por último, mas não menos importante, não tem existido uma disponibilidade efetiva para a cooperação entre partidos. Em oposição ao período da Guerra Fria, a falta de compromisso deve-se, agora, em «maior parte aos partidos de esquerda radical do que dos socialistas» (Freire 2017, 15). Este ponto poderá estar relacionado «com a importância do papel dos líderes, em particular, e dos dirigentes partidários, em geral, para a busca de tais entendimentos» (Freire 2017, 91).

[69]
«PCP constituted one of the two sides of the cleavage between anti and pro-system parties»

[70]
«even as the conflict about the nature of the regime was solved and the Communists converged with the notion of representative democracy, their opposition to NATO, European integration, and the Euro»

[71]
«mainstream and traditionally pro-European parties (first the PSD and then the PS) are less adversarial than they would be in normal times, the exact opposite is true for the PCP and PEV, two more radical and Eurosceptic parties»

[72]
Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses – Intersindical Nacional

[73]
União Geral dos Trabalhadores

Face a toda a conjuntura histórico-ideológica que, de modo consequente, deu origem ao arco governamental, quais as condições que se transfiguraram em 2015 e deram origem ao fenómeno histórico de 40 anos da democracia portuguesa? No nosso ponto de vista, tudo sucede após o resgaste da Troika e as consequentes medidas de austeridade implementadas pelo governo de coligação pós-eleitoral – PSD e CDS – de direita, enquanto efeitos da crise da dívida soberana. Em 2011 sabia-se que, independentemente do partido que alcançasse a vitória legislativa, «o novo governo seria inevitavelmente constrangido pelos compromissos com os credores internacionais» (Giorgi, Moury & Ruivo 2015, 60) [74], isto é, para com a UE e, em específico, para com a Troika. Cumprindo com o exigido, o governo de Passos Coelho «dedicou-se de corpo e alma à aprovação das medidas de austeridade consideradas essenciais para o sucesso do programa de ajustamento e o plano de recuperação económica» (Giorgi & Pereira 2016, 453) [75]. Sem embargo, existem duas convicções contrárias quanto a este ponto. Por um lado, autores como Ladi (2014) e Sacchi (2015) defendem que os governos, desde o início da crise, se viram forçados a implementar medidas de austeridade impopulares em troca de empréstimos de salvamento e/ou à conta de avisos das instituições supranacionais (apud Giorgi, Moury & Ruivo 2015, 60). Por outro, autores como Moury e Freire (2013) afirmam que a crise concedeu poderes para a aprovação de reformas desejadas pelos partidos de direita que em circunstâncias normais não seriam aprovadas (apud ibidem). Nesta mesma posição encontravam-se o BE, o PEV e o PCP que, além de se terem recusado a negociar com a Troika (como antes indicado), declaravam que «o resgate não foi nem democrático nem necessário» (Giorgi, Moury e Ruivo 2015, 60) [76] e acusavam a direita de não-cumprimento do seu mandato. Esta segunda narrativa terá, certamente, origem no facto de «muitas vezes o próprio Passos Coelho “ter dito que” o governo queria “ir mais além da troika”; e viu o resgate como uma “janela de oportunidade” para aprovar políticas que não poderiam ter sido aprovadas noutras circunstâncias» (Moury 2016, 78) [77].

[74]
«the new government would inevitably be constrained by the commitments to its international lenders»

[75]
«put its heart and soul into the approval of austerity measures considered essential for the success of the adjustment programme and the economic recovery plan»

[76]
«bailout was undemocratic and unnecessary»

[77]
O que poderá justificar a necessidade sentida por Passos Coelho de, após a assinatura dos acordos bilaterais entre a esquerda plural, prevendo já a queda do seu governo (que sucedeu no dia seguinte), explanar a implementação das medidas de austeridade como necessidade de assumir programas de ajustamento e nunca como escolhas ideológicas. Ver “Passos Coelho: ‘A austeridade nunca foi uma questão de escolha, mas sim uma necessidade’", Jornal de Negócios (link).

 

Vídeo que explica como funciona o Fundo Monetário Internacional. “Troika” é a designação atribuída à equipa composta pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Central Europeu (BCE) e Comissão Europeia (CE). Tem origem na palavra russa “troika”, que designa um comité de três membros. Na política, o termo designa uma aliança de três personagens do mesmo nível e poder que se reúnem para a gestão de uma entidade ou para completar uma missão. Neste vídeo (em inglês, não legendado), é explicado o funcionamento básico do FMI.

 
A implementação das medidas de austeridade resultou numa «viragem súbita à direita em questões económicas pelo maior partido no governo» (Freire, Lisdi & Tsatsanis 2020, 78) [78], o PSD, «que assumiu posições ainda mais à direita do que o CDS-PP» (Freire 2017, 15), que não foram, porém, «seguidas [...] pelos eleitores em geral nem pelos eleitores do PSD em particular» (Freire, Lisdi & Tsatsanis 2020, 78) [79]. Deste modo, enquanto o PSD se moveu para a direita (de 7,38, em 2011, para 7,99, em 2015), o PS movimentou-se ligeiramente para a esquerda (Lisi 2016, 546) (Figura 3), o que «veio tornar os entendimentos do PS com a direita muito mais difíceis» (Freire 2017, 15). Esta polarização provocada pela crise explica-se, por um lado, pelas consequentes medidas de austeridade que movimentaram o PSD para a direita e, por outro, pelo descontentamento da ala esquerda face ao Estado cada vez menos social e às repercussões negativas na popularidade eleitoral do PS (visto que havia assinado o acordo de resgate com os partidos de direita), que se moveu, por isso, para a esquerda, assim como toda a ala esquerda, sobretudo o PCP (Figura 3).

De acordo com Lisi (2016, 544), o objetivo deste movimento para a esquerda era, sobretudo, o possível enfraquecimento da ala direita e, de acordo com Freire (2017, 22), a eliminação do «risco de pasokização do PS» [80]. Neste sentido, a «distância entre o PS e os dois partidos de esquerda radical permaneceu relativamente estável, enquanto o fosso entre os dois partidos moderados se alargou substancialmente» (Lisi 2016, 547) [81], dificultando profundamente as usuais alianças entre os partidos moderados (PSD e PS), uma vez que «estão mais distantes do que nunca […] em termos ideológicos na dimensão esquerda-direita» (Freire 2017, 203). Esta polarização crescente ocorreu «ao nível da elite mas não ao nível das massas» (Freire, Lisdi & Tsatsanis 2020, 76) [82]. Ao nível do eleitorado, por seu lado, já existia uma desafeição política anteriormente ao início da crise (ibid., 71), e esta foi o catalizador que levou a uma insatisfação geral com as instituições políticas nacionais (Freire, Lisi e Tsatsanis 2020, 66). Por conseguinte, este descontentamento e desconfiança ao nível nacional (que, além da crise, também se mostrava desvantajoso face ao caso dos Vistos Gold e ao caso Sócrates, antes indicados) amplificou-se para o nível supranacional. De acordo com o Eurobarómetro, existiu um declínio de confiança significativo no Parlamento Europeu de 70%, em 2010, para 33%, em 2014 (Lisi 2016; Freire, Lisi & Tsatsanis 2020). Assim, se, por um lado, «os principais partidos da oposição têm melhores hipóteses durante a crise financeira de substituir os incumbentes se houver novas eleições» (Giorgi, Moury & Ruivo 2015, 58) [83], por outro, todos estes fatores de desconfiança indicam uma rejeição das formas convencionais de representatividade democrática e, consequentemente, preparam o contexto político português para a entrada de partidos exteriores ao arco governamental, que podem explorar o descontentamento dos cidadãos e a falta de representação dos mais afetados pela crise (Lisi 2016; Freire, Lisi & Tsatsanis 2020).

[78]
«sharp move to the right on the economic issues by the major governing party»

[79]
«followed [...] by voters in general nor by PSD voters in particular»

[80]
Alusão às significativas perdas eleitorais do partido socialista grego PASOK após se ter aliado ao partido de centro-direita ND, como referido anteriormente.

[81]
«distance between the PS and the two radical-left parties has remained relatively stable, whereas the gap between the two moderate parties has widened substantially»

[82]
«at the elite level but not at the mass level»

[83]
«the main opposition parties have a better chance during the financial crisis of replacing the incumbents if new elections occur»

Figura 8 – Posição ideológica dos partidos portugueses no espaço temporal entre 2009 e 2015, de acordo com as perceções dos votantes (Lisi 2016).

Figura 8 – Posição ideológica dos partidos portugueses no espaço temporal entre 2009 e 2015, de acordo com as perceções dos votantes (Lisi 2016).

Embora possa ser contra-argumentado que, ainda assim, a vitória tenha sido alcançada pela ala direita, isso explica-se porque «num contexto de crise, a votação económica teve um papel fundamental» (Lewis-Beck e Nadeau apud Goulart e Veiga 2016, 199) [84] e a maioria dos portugueses não só atribuiu a responsabilidade pela situação económica desfavorável ao anterior governo do PS (Magalhães 2016), como quase 50% dos portugueses alegou que a competência económica da Pàf era superior à do anterior governo do PS, o que pode ser verificado não só pela recuperação ligeira em 2014 [85], como pelo facto de não ter sido necessário, tal como na Irlanda, e contrariamente à Grécia, um segundo resgate (Magalhães 2017; Magalhães 2016; Giorgi & Pereira, 2016). Por outro lado, o descontentamento com a coligação Pàf, e consequente responsabilização, exibiu-se na vitória através de uma maioria relativa, o que não só é justificado pelo facto de «o mandato político recebido pela direita em 2011 [ter ido] muito além do programa inicial da Troika» (Freire 2017, 15), mas, também, pelas duas situações difíceis com que a coligação teve de lidar, notadamente: o anúncio do aumento da contribuição da Segurança Social paga pelos trabalhadores para compensar a anterior redução da contribuição dos empregadores, gerando diversas mobilizações em Portugal e tendo sido, por isso, revogada; e, sobretudo, a demissão do Ministro das Finanças e o posterior anúncio de Portas de que abandonaria o governo, apesar de não o ter feito (Giorgi & Pereira 2016, 455). Posto isto, podemos reiterar que «a crise foi uma das razões por trás do final do cisma de 40 anos entre os partidos de esquerda em Portugal, que até então nunca tinham conseguido governar juntos» (Mura & Vidal apud Freire, Lisi & Tsatsanis 2020, 69) [86].

[84]
«in a context of crisis, economic voting certainly played a major role»

[85]
Atente-se que é sabido que «noutros países que também experienciaram melhorias económicas em contexto de pós-austeridade – como Espanha em 2015 ou a Irelanda em 2016 – os partidos incumbentes sofreram, apesar disso, significativas perdas eleitorais» («in other countries also experiencing economic improvements in post-austerity contexts – such as Spain in 2015 or Ireland in 2016 – incumbent parties nonetheless experienced important electoral losses»; Magalhães 2017, 756). Porém toda a conjuntura interna do PS, associada ao caso Sócrates, como previamente enunciado, foram fatores significativos para esta divergência. A isso associa-se, ainda, o facto de as medidas de austeridade constituírem um «elemento desencadeador que permite aos cidadãos comuns associar diretamente as dificuldades económicas à ação das elites políticas incumbetnes» («trigger that enables ordinary people to link economic hardship directly to the action of incumbent political elites»; Bermeo & Bartels apud Magalhães 2017, 749), porque, de acordo com Anderson (2007), «os cidadãos têm tendência a, sistematicamente fazer avaliações erradas do estado da economia, mesmo quando lhes é apresentado numa bandeja de prata» («citizens are likely to systematically misjudge the state of the economy even when it is presented to them on a silver platter»; apud Magalhães 2017, 748).

[86]
«the crisis was one of the reasons behind the end of the 40-year schism among the left-wing parties in Portugal, which until then had never been able to govern together»

 
Figura 9 – Manifestação do movimento “Que se lixe a Troika”, no dia 2 de março de 2013, em Lisboa, onde cerca de 800 mil pessoas desceram a Avenida da Liberdade ao som de slogans e música evocativos do 25 de abril de 1974, e que esteve associada a m…

Figura 9 – Manifestação do movimento “Que se lixe a Troika”, no dia 2 de março de 2013, em Lisboa, onde cerca de 800 mil pessoas desceram a Avenida da Liberdade ao som de slogans e música evocativos do 25 de abril de 1974, e que esteve associada a manifestações semelhantes, ainda que mais pequenas, em várias outras cidades do país. A manifestação foi apoiada pela CGTP-IN, bem como por muitos deputados e militantes do Bloco de Esquerda, PCP e PS, e foi talvez o momento mais marcante – e mobilizador – dos protestos contra as medidas de austeridade.

 
Anteriormente foi referido que um dos fatores necessários para o entendimento da esquerda plural seria a sua propensão para cooperar e, à vista disso, o papel do seu líder na orientação para tais entendimentos. Ora, isso alterou-se em 2014, após António Costa ter questionado os resultados insatisfatórios do PS nas Eleições Europeias, fazendo com que «pela primeira vez na sua história o PS realizasse eleições primárias para selecionar o candidato a Primeiro-Ministro nas eleições [legislativas] seguintes» (Giorgi & Pereira 2016, 456) [87], em que Costa ganhou com 67,7% dos votos (ibid.), passando a ser líder do PS no lugar de António José Seguro. Desde cedo, o novo líder do PS deu sinais diversos de, por um lado,

«querer dessacralizar a vaca sagrada […] do arco governamental (ou seja, que a governação só pode acontecer com o PS e os partidos situados à sua direita) e, por outro, mostrou abertura e vontade para entendimentos com os partidos à sua esquerda» (Freire 2017, 136).

Esta abertura já tinha sido exibida ao nível autárquico, aquando do acordo com José Sá Fernandes [88], vereador independente do BE, no momento do seu mandato como Presidente da Câmara Municipal de Lisboa (2007) e da sua coligação aos Cidadãos por Lisboa (Freire 2017, 136). Embora o acordo com o BE tenha sido desfeito, Costa demonstrava vontade de se aliar aos partidos à sua esquerda e, sobretudo, de querer extrapolar esse entendimento para um nível nacional. António Costa apresentava uma «vontade de divergir da direita no poder, das políticas neoliberais apresentadas como “o único jogo na cidade”» (ibid.) porque sabia que é «quando os socialistas se tornam indistinguíveis da direita que se tornam irrelevantes e abrem espaço para que a oposição ao euroliberalismo seja monopolizada pela direita radical e/ou direita nacionalista e eurocética (Hungria, Polónia, França)» (ibid., 175). Além disso, Costa sabia que ou se tornava Primeiro-Ministro através deste entendimento da esquerda plural, ou iria apoiar parlamentarmente, ou até através de coligação formal, um governo de centro-direita, o que, como já mencionado, não se exibiam como alternativas viáveis devido ao risco de “pasokização”. Por conseguinte, assumiu uma «inteligente estratégia eleitoral para encurralar a esquerda radical obrigando-a ou a assumir o poder ou a correr o sério risco de, por recusar o “pedido do noivado” do PS, ser trucidada nas urnas pelos (seus) eleitores de esquerda» (ibid., 136). Sabia, pois, que:

«[o] tão abusado conceito de “arco da governação” não pode servir para justificar a exclusão sistemática de certos partidos da responsabilidade de governar. É na sua pluralidade que o Parlamento representa o país e não há qualquer razão para o PS ignorar as aspirações dos eleitores representados pelos partidos à sua esquerda» (Costa apud Freire 2017, 130).

Do ponto de vista da ala à esquerda do PS, existiam diversas razões para a formação de um entendimento de esquerdas. Em termos conjunturais, a esquerda radical, tal como o PS, almejava suprimir as políticas neoliberais do PSD e do CDS. Por outro lado, em termos estruturais, tornava-se necessário, tal como a anterior citação de Costa atesta, uma maior clareza nas alternativas políticas de governo, bem como uma maior inclusão e inovação, sobretudo da ala esquerda, para «se poderem contestar as fortes pressões neoliberais vindas da Europa» (ibid., 139). Em termos particulares, embora a CDU seja eurocética, não apenas no que respeita à rejeição da integração de Portugal na UE, mas também à integração na União Económica Monetária (UEM), Costa reiterou diversas vezes, para amenizar possíveis preocupações neste campo, que o PS não era iria ser como a coligação de esquerda radical Syriza e que, portanto, apresentava-se «como fortemente comprometido com o projeto e os objetivos europeus» [89] (Giorgi e Pereira 2016, 458). Além disso, apesar de as cedências para um entendimento terem sido múltiplas, estas foram

«porventura maiores da parte dos pequenos (BE e/ou PCP) do que dos grandes (PS) por uma razão simples: a força dos números, que é um elemento crucial numa qualquer democracia, implica que os grandes tenham um papel mais importante do que os pequenos num acordo parlamentar ou coligação» (Freire 2009, 36).

Ainda assim, apesar de o PS preferir uma coligação governamental, os partidos de esquerda radical rejeitaram esta oferta e os acordos bilaterais basearam-se num «"mínimo denominador comum", uma lista de prioridades partilhadas, que assim evitou adotar uma posição clara em assuntos mais controversos, nomeadamente questões europeias e o Tratado de Lisboa» (Lisi 2016, 554) [90]. Esta alternativa oferecia a vantagem de dissipar o receio tido por parte da ala esquerda de diluir a sua identidade partidária ao realizar uma aliança com os socialistas, como anteriormente indicado, em virtude de poderem «manter um pé dentro e um pé fora do governo» (ibid., p.556) [91], de que beneficiou, especialmente, o PCP e a sua ligação à CGTP-IN.

«[E]sta é precisamente a razão pela qual o parlamentarismo contratual emerge como uma solução interessante para partidos de fora [do arco de governação]: "acesso ao poder, mas criticando e fazendo protestos contra medidas do governo de que não gostam para manter as credenciais radicais e a mobilização partidária"» (Dunphy & Bale apud Fernandes, Magalhães & Pereira 2018, 515) [92].

Ademais, o entendimento de esquerdas baseou-se num status quo ante bellum às medidas de austeridade, ou seja, todo o programa se baseou numa «reversão de algumas das mais importantes medidas implementadas na sequência do acordo de entendimento» (Lisi 2016, 554) [93], sobretudo no que concerne o Estado Social e os impostos [94]. De outro ponto de vista, o acordo foi ainda facilitado por uma «substituição geracional» (ibid.) [95], «uma nova geração de esquerda […] que não vivenciou esses dias e que, não estando marcada por essa espécie de trauma genético, poderá ter contribuído para criar as condições psicológicas para alcançar tal acordo» (Moreira apud Freire 2017, 206), isto é, uma geração que «pertence à geração pós-25 de abril» [96] (Lisi 2016, 554) [97].

Além do contexto nacional, como por exemplo o campo jurídico que impedia a dissolução do Parlamento pelo Presidente da República nos seis meses anteriores às Eleições Presidenciais (cf. Art. 172.º, n.º 1 da CRP), como previamente mencionado, o próprio contexto internacional foi benéfico para a concretização deste fenómeno histórico. Por um lado, este ocorreu aquando da crise dos refugiados, que suplicava uma Europa mais social, face à «Europa cada vez menos social e cada vez menos democrática» desta altura (Freire 2017, 153). Por outro, foi o ano em que se deu a ascensão da coligação da esquerda radical Syriza, nas eleições legislativas gregas de janeiro de 2015, e o sucesso do Podemos, nas eleições autárquicas espanholas de maio de 2015, demonstrando o «gradual desgaste dos partidos moderados» (Lisi & Fernandes 2015, 291) e, por conseguinte, «influenciando […] o posicionamento e as políticas propostas pelos portugueses» (ibid.).

Por fim, com a formação da Geringonça ocorria «a queda do Muro de Berlim em Portugal 26 anos depois» (Freire 2017, 202). Embora Portugal tenha demorado a alcançar um entendimento entre a esquerda plural, conseguiu fazê-lo e, consequentemente, a curto prazo, resolveu o desequilíbrio estrutural da política portuguesa que prejudicava a qualidade da democracia, na medida em que excluía «sistematicamente do acesso ao governo 15% a 20% dos eleitores» (ibid., 152), tornando-se, portanto, mais inclusiva.

Relativamente a consequências que poderão vir a manifestar-se a longo prazo, é necessário aguardar pelos próximos anos para que possa ser estabelecido um padrão. «Portugal chegou tarde, especialmente quando consideramos o contexto do sul da Europa» (Lisi 2016, 543) [98], mas, ainda assim, podemos afirmar que existiu «um contágio limitado da solução portuguesa para fora» (Freire 2017, 219), por exemplo nas duas eleições legislativas espanholas inconclusivas, em dezembro de 2015 e julho de 2016, visto que o PSOE apresentou uma incapacidade de entendimento com o Podemos e com os independentistas catalães, ou seja, «de repente, Portugal tornou-se um modelo para o sucesso económico, a estabilidade política, ou até a resiliência de partidos sociais democráticos ou política progressista» (Fernandes, Magalhães & Pereira 2018, 519) [99].

[87]
«for the first time in its history the PS held primary elections in order to select its PM candidate in the upcoming elections»

[88]
Ver "António Costa e José Sá Fernandes chegam a acordo na Câmara Municipal de Lisboa", Público (link).

[89]
«as deeply committed to the European project and goals»

[90]
«“common minimum denominator”, a list of their shared priorities, which thus avoided taking a clear position on more controversial issues, namely on European matters and the Lisbon Treaty»

[91]
«keep one foot in and one foot out of government»

[92]
«this is precisely why contract parliamentarism emerges as an interesting solution for outsider parties: “access to power, but criticising and demonstrating against government measures they don’t like in order to maintain radical credentials and party mobilisation”»

[93]
«reversal of some of the most important measures implemented as a result of MoU»

[94]
Ver "As ‘rodas’ que movem a ‘geringonça’ para devolver os direitos e os rendimentos", Dinheiro Vivo (link).

[95]
«generational replacement»

[96]
«belong to the post-25 April generation»

[97]
Embora algumas figuras socialistas seniores, tais como Vera Jardim, Sérgio, Sousa Pinto e Francisco Assis, tenham expressado uma atitude reticente quanto a este entendimento de esquerdas (Fernandes 2016, 897).

[98]
«Portugal is a latecomer, especially when we consider the Southern European context»

[99]
«suddenly, Portugal became a “poster boy” for economic success, political stability, or even the resilience of social democratic parties or progressive politics»

 

4. conclusão

A análise realizada dos resultados eleitorais permite a apreensão de que a população portuguesa se encontrava descontente com o sistema partidário existente. Este descontentamento não só é exibido através do crescimento contínuo da abstenção, nas eleições legislativas, desde 2009, como dos resultados eleitorais das eleições legislativas de 2015 que não concediam maiorias a nenhum dos partidos. Neste sentido, compreendemos a existência de uma responsabilização/punição à coligação PSD e CDS que governou no mandato de 2011-2015, mas, em simultâneo, uma desconfiança em relação ao PS, devido à responsabilização da situação deficitária económica atribuída pelo eleitorado ao seu anterior governo e à sua correlação com o Caso Sócrates. Por conseguinte, os partidos mainstream de centro-direita, PSD, e centro-esquerda, PS, foram postos em causa.

Com a descrição de todo o processo de formação de governo, expusemos as diversas hipóteses e contextos aquando do período de decisão eleitoral, e todas as condições técnicas e legais que permitiram cada um desses cenários, de modo a existir uma compreensão mais abrangente do sistema eleitoral português. O caminho percorrido pelo conceito de “arco governamental” permitiu a chegada às condições do seu rompimento e da consequente formação da Geringonça. Deste modo, inferiu-se que este governo não passou de um casamento de conveniência (Lisi 2016) para impedir que a direita retornasse ao poder e possibilitar a implementação de uma agenda anti-austeridade. Neste sentido, não existiu um único fator, mas antes um conjunto de fatores e condições estruturais, situacionais e contextuais, algumas inéditas, que permitiram a significativa alteração dos 40 anos da história da democracia do sistema eleitoral português, que em circunstâncias normais não teria decorrido (Giorgi & Cancela 2019).

 

Para citar este ensaio:

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referências ↓

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